
O TRIUNFO DO FANATISMO

– As desculpas de Santos Silva sobre o episódio da gravação televisiva não autorizada no Palácio de S. Bento trazem-me à memória o seu cobarde silêncio quando, sendo ele o socrático ministro que tutelava a Comunicação Social, eu fui objecto de uma actuação em tudo idêntica, depois de um debate na SIC com o meu principal adversário na disputa da Presidência da Câmara Municipal de Lisboa.
– Na altura, S.S. não viu nessa tramóia nada que, como agora se queixa, violasse a constituição ou atentasse contra os direitos e a liberdade de um cidadão, apesar de igualmente filmado sem autorização, e neste caso até pelas costas…
– Por aqui, por esta óbvia e escandalosa duplicidade de critérios, se vê como a tartufice de S.S. não tem limites, confirmando a contumaz e abjecta hipocrisia dos seus grotescos atritos com o CHEGA, que nada têm a ver com o combate político, antes visam apenas encurralar o PSD reforçando o próprio CHEGA, ajudar o PS e, claro, promover as suas pueris ambições político-presidenciais.
– Miguel Esteves Cardoso decidiu, numa mini-crónica intitulada “O antiwokismo primário”, benzer a peste que ameaça a cidade, o wokismo, essa panóplia primária que combina realidades tão sinistras como a cancel culture, o interseccionismo, a apropriação cultural e outras realidades do “género” ….
– Surpreendeu-me, embora não muito, não só porque MEC há uns tempos atrás já tinha dito, a propósito do ”politicamente correcto”, alguns disparates nesta linha, mas sobretudo pelo “grau zero” a que chegaram as suas mini-crónicas no jornal que se tem tornado, sobretudo pelas suas opções de opinião, numa espécie de órgão oficioso do wokismo nacional, onde agora MEC publicou o seu manifesto s0bre “O wokismo primário” (Público, 18.04.2023).
– MEC vem assim benzer a peste do wokismo , isto é a cancel culture, a censura de autores e/ou a reescrita estalinista das suas obras – num tsunanami inquisitorial que tudo arrasa de Enyd Blyton a Agatha Christie … -, a perseguição policial ( a raiar o pidesco) das mais diversas pessoas devido apenas às suas ideias, chegando a exigir e a conseguir a perda dos seus empregos (com a consequente destruição das suas vidas profissionais e privadas), a chamada “apropriação cultural”, os mais variados atentados à liberdade de expressão, etc., etc.
– E MEC fá-lo de dois modos de uma indigência quase inqualificável: o primeiro é – imagine-se! – o de tentar fazer passar o wokismo por uma pacífica e inócua variante dos programas políticos mais ou menos social-democratas de defesa de uma sociedade “de igualdade de oportunidades” … Pasma-se!
– O segundo, ainda mais grotesco, é levar a sua bênção ao ponto de afirmar que “não ser woke é ser selvagem” – quando o wokismo se caracteriza, objectivamente, por toda o espectro que acima referi, pelo fanatismo analfabeto e persecutório de tudo o que seja diferente, em nome de identidades ora forjadas ora imaginárias, mas sempre distorcidas e manipuladoras, agredindo, anulando, cancelando tudo o que não se lhe submeter total e caninamente.
Nada de equívocos, MEC, aqui é que está a selva.
– Parece estranho, mas é cada vez mais comum: refiro-me ao modo de se falar da política como se de uma terapêutica se tratasse, a sugerir uma última metamorfose dos desacreditados vanguardismos de outros tempos. Há dias, no jornal Público, Augusto Santos Silva ilustrou exemplarmente esta tendência, num artigo intitulado “Remédios contra o avanço da extrema-direita na Europa” (05.02.2023). É um texto que merece atenção e análise, ele ilustra bem essa deriva politico-terapêutica, sobretudo porque ela – entre muitas outras coisas, que agora não vêm ao caso – leva a considerar, nas palavras do próprio A.S.S., as estratégias como “remédios” e os adversários como “doentes perigosos”. Assim mesmo.
– É uma deriva no grau zero do pensamento, bem exposto na frase de abertura do artigo, onde se diz que, “para um democrata, o avanço da extrema-direita será comparável a uma doença que progride, enfraquece e pode ser fatal para o regime político característico dos países da União europeia: a democracia liberal e de forte cunho social.” Depois seguem-se as banalidades do costume que já lemos e ouvimos milhares de vezes, num “lençol” de duas páginas de jornal onde não se apresenta uma única ideia nova sobre nada, numa litania de estereótipos que esta “soi-disant” social-democracia – que trocou o social pelo “societal” e se converteu sem resistência ao extremismo centrista europeu – há anos repete “ad nauseam”.
– Mas este grau zero do pensamento político tem um fito: e esse fito é, no caso de A.S.S., ocultar algo essencial, que é o da extrema cumplicidade factual com o partido CHEGA, cumplicidade que ele próprio há vários anos cultiva na forma de um cuidadosamente encenado conflito retórico – começou a fazê-lo ainda no Governo anterior, não perde uma ocasião para continuar a fazê-lo agora que lidera o Parlamento. O que é pois preciso compreender, é que foi o PS que, deste modo, na verdade “inventou” o Chega, para assim – dividindo o seu eleitorado – bloquear qualquer ameaça efectiva do PSD, missão que o CHEGA tem cumprido sem brilho, mas com inegável eficácia. O que nem sequer é original, François Mitterrand fez o mesmo (até mais…) com Jean-Marie Le Pen e a Frente Nacional, para se manter no poder mais alguns anos – o que conseguiu, é certo, com os resultados que depois se viu!
– Claro que para este lance funcionar é preciso diabolizar incessantemente o CHEGA, o que, com a ora atávica ora pueril cumplicidade da generalidade dos media, jornalistas ou comentadores, não tem sido difícil, visando assim impedir qualquer tipo de aproximação CHEGA/PSD, como se de um verdadeiro crime de lesa-democracia se tratasse. E, ao que parece, são muitos os que vão no jogo, a maior parte de um modo completamente descerebrado, alguns mais complacentes dizendo esperar que o CHEGA de des-radicalize…ou seja, se suicide, porque a chave do seu sucesso está justamente, nestes “tempos de cólera”, no seu radicalismo. Basta olhar para a Itália dos últimos meses para se perceber a inanidade desta conversa, e perceber o óbvio: é que o CHEGA só se des-radicalizará quando – e se – chegar ao poder.
– Perceba-se o elementar: este CHEGA, radical e diabolizado, é o mais sólido seguro do PS desorientado e desvitalizado que hoje temos, se manter no poder. E esta aliança está para durar, nunca a INICIATIVA LIBERAL a atrapalhará, refém como está do arrastado fim de ciclo liberal que o mundo vive hoje, com todos – inclusiva na própria I.L. – de mão estendida na fila dessa nova forma de Estado-Providência que é o Estado-Guichet.
Escreveu-se muito sobre o “trans-caso” que aconteceu no Teatro de São Luiz, no passado dia 19, no decorrer do espectáculo “Tudo sobre a minha mãe”. Infelizmente, com raríssimas excepções – que as houve -, em geral deu-se uma no cravo e outra na ferradura, a revelar o medo que já grassa por aí do wokismo (termo de tradução equívoca, que circula sobretudo no original), da cancel culture (que se pode traduzir por “práticas de cancelamento”) e de toda a imensa panóplia de formas de fanatismo analfabeto e persecutório que acompanha estes dois termos.
Um fanatismo que se identifica bem no frenético uso da palavra “fobia”. Ao juntar este sufixo (que significa medo e/ou aversão) a todas as posições que criticam – ou apenas não acolhem -, as suas teses, o que o wokismo, a “cancel culture” e os seus derivados visam, não é questionar, argumentar ou debater ideias, mas censurar, garrotar e calar todos os que discordam das suas teses – mesmo pela força, quando o julguem necessário, como tantas vezes e em tantos planos já tem acontecido.
O seu mundo é o do impensar, forma hoje dominante do politicamente correcto e da sua fábrica de ignorâncias. Poder-se-ia talvez dizer que se trata de uma nova modalidade de Ur-fascismo, há anos caracterizado por Umberto Eco. Mas na verdade trata-se mais de uma peste, uma nova peste que se vem espalhando por todo o Ocidente, sobretudo a partir da generalidade dos media e, lamentavelmente, de muitas Universidades, peste que é preciso combater sem medo, com conhecimento, lucidez e coragem.
– Esperava-se um Presidente que, com sentido de Estado, trouxesse ao País ambição e capacidade de mobilização por causas, calhou-nos um que inexplicavelmente se apalhaça cada vez mais, confundindo a Nação com um puro palco do seu infantil e colossal narcisismo … Para não me citar quando, há 3 anos, em plena euforia nacional-marcelista, antecipei em entrevista ao SOL (23/11/2019) que Marcelo Rebelo de Sousa se arriscava a vir “a ser lembrado como o Américo Tomás, um presidente sem conteúdo” – e permita-se-me que lembre que já antes (em entrevista ao EXPRESSO a 05/04/1997) tinha identificado a famosa “gelatina política” marcelista – citarei um esplêndido, certeiro e corajoso texto de Miguel Monjardino no último EXPRESSO, quando escreve que Marcelo Rebelo de Sousa se tornou numa “ameaça à credibilidade da instituição Presidência da República e ao futuro de Portugal. (…) Os portugueses precisam que um Presidente da República corajoso, competente, e bem informado lhes sugira uma trajectória para atingir um conjunto de fins em que a maioria se reveja, isto é, uma estratégia”, e não – como diz Miguel Monjardino, de quem os entretenha ou menorize. A ler, absolutamente.
– Como se isto não bastasse, quando se esperava à frente do Parlamento alguém que o resgatasse da imensa e tantas vezes patética parasitagem politiqueira do “Chega” pela presidência anterior – para já não falar dos seus nefastos e perversos efeitos políticos -, sai-nos “na rifa” um político que ainda a vem, imprudentemente e sistematicamente, aprofundar…
– Por fim, esperava-se um Primeiro-Ministro que, finalmente senhor de uma sólida maioria absoluta – e agora sem a dupla desculpa dos compromissos “geringonciais” e da falta de dinheiro -, se dedicasse finalmente e com energia à concretização dos projectos de que o país tento precisa, e descobre-se um líder sem autoridade, sem equipa e sem visão, num atordoado desatino que lembra cada vez mais o segundo mandato de António Guterres…
– Em suma, depois da geringonça, parece que estamos agora entregues a uma caranguejola, que se desconjunta a cada solavanco!… Ou, como diria Agustina, que todos deviam ler um pouco mais: “Há em Portugal uma perfeita improvisação do destino. Todos se contradizem, mas ninguém entra em conflito. (..) As pessoas confraternizam com o irremediável, mais do que estão divididas nas ideias”. É isto, não é?
– A hipocrisia e o cinismo não são traços que se excluam, mas também não se confundem. Partilham, contudo, uma característica comum: a duplicidade. Foi o que me ocorreu ao ler a entrevista que António Costa deu à CNN/Portugal no dia do seu 1º aniversario, onde afirmou – para meu espanto e perante o silêncio geral dos media, sempre anestesiados com os mais irrelevantes “fait-divers” – o contrário de tudo o que tem, ora dito ora insinuado, sobre matéria europeia, nomeadamente no que se refere ao contexto criado pela invasão russa da Ucrânia.
– Talvez Costa tenha lido o meu último livro – que naturalmente lhe ofereci e que ele entretanto agradeceu -, se me é permitida a ironia… É que Costa diz nessa entrevista o contrário do que a “vulgata” europeia (sob a batuta duma cada vez mais desnorteada Ursula van der Leyden, mas isso tem que ficar para outra vez) nos tem imposto sem qualquer noção das suas consequências, “vulgata” a que Costa se tem submetido sempre com tranquila docilidade.
– Ora, segundo o despacho da Lusa, amplamente difundido e em nenhum ponto desmentido, o que agora António Costa afirmou naquela entrevista é bem diferente:
– Costa assume-se contra o alargamento da União Europeia, afirmando que “não há condições nem institucionais nem orçamentais” para que ele se possa fazer;
– Costa diz que “a União Europeia não tem condições para cumprir as expectativas que agora está a criar.;
– Costa considera tais expectativas meros “gestos políticos de ocasião”;
– Costa antecipa um “efeito de ricochete” e um enorme drama” como consequência das frustrações das expectativas entretanto criadas.
– Costa pensa que a União Europeia tem que se reestruturar profundamente. Isto, se não quiser implodir por força das adesões”;
– Costa defende uma “Europa com geometrias variáveis”.
– Podíamos continuar, mas o essencial está aqui. Todas as citações são da transcrição da Lusa e, repito, nenhuma foi desmentida. Estando de acordo com quase tudo o que ele afirma, só lamento que ele tenha deixado de fora as decisivas questões da segurança europeia (e do seu respectivo e imprescindível orçamento) e da “soberania europeia”, bem como a urgente questão de fixação das suas fronteiras, que ponha fim à gelatinosa definição geográfica da União Europeia, raiz de tantos e tão complexos problemas actuais.
– O que é incontroverso, é que estamos perante uma contradição, ponto por ponto, entre as afirmações agora feitas por António Costa e o que ele tem sempre, explicita ou implicitamente, afirmado sobre estas questões, tanto no espaço público português como – tanto quanto se sabe e a julgar pelas suas declarações finais nessas ocasiões – no Conselho Europeu.
– Excluindo que se trate de uma inaceitável duplicidade, entre o cinismo e a hipocrisia, imprópria de um chefe de governo por muitas “bazucas” imaginárias que estejam em jogo, aguardemos, pois, que António Costa assuma estas “heterodoxas” posições nas instituições europeias e em jornais e televisões com projeção internacional.
– Estou certo que, no Die Welt ou no The Guardian, no Le Monde ou no The Washington Post, ou ainda na BBC ou na CNN Internacional, não lhe faltará palco para tornar claro o que agora diz que pensa – contribuindo desse modo para abalar a “vulgata” europeia que nos está a atirar para um inevitável pesadelo no imediato e para um desastre a breve prazo.
– Quando é que finalmente se reconhecerá que, hoje, no mundo ocidental, somos todos liberais? E que – por paradoxal que tal possa parecer – tal facto coincide com o fim do ciclo económico liberal que marcou as últimas décadas, seja ele dito liberalismo clássico, neo-liberalismo ou ultra-liberalismo?
– O paradoxo vem de que a realidade liberal – que Marcel Gauchet designou como o “facto liberal” -, entendida como uma imperativa, radical e sempre crescente exigência de mais autonomia e de mais liberdade das sociedades, e sobretudo dos indivíduos, se disseminou por todo o Ocidente, tornando-se inquestionavelmente dominante e sem rival à vista.
– Um dos efeitos deste facto foi a progressiva erosão das ideologias, de todas elas, sem excepção. Que, para sobreviverem, tiveram que – embora sem o assumir – se tornar liberais: apareceram assim o social-liberalismo, o conservadorismo liberal, a esquerda e a direita liberais, etc…
– Mas há aqui uma distinção fundamental a traçar, que nunca é feita. É que uma coisa é o liberalismo como doutrina (ou facto) no sentido acima indicado. Outra, bem diferente, é o liberalismo económico, seja qual for a sua variante.
– E o paradoxo deve-se a que a consagração global da doutrina, ou facto, liberal, se deu paralela e simultaneamente ao colapso da sua matriz económica. Está aqui, a meu ver, a raiz da enorme desorientação, tantas vezes a raiar o mais completo “non sense”, da política actual.
– O caso do estrondoso fiasco de Liz Truss, em Inglaterra, tornou de resto esta situação numa evidência, que sem dúvida fará data: a do fim do ciclo liberal económico, que actualmente perde no seu histórico – mas muito ficcional, note-se – confronto com o Estado.
– Que Estado lá virá, não sabemos…E nesta “era das geringonças” políticas, que cada vez mais tomam o lugar e a função das antigas ideologias, o futuro é uma grande e muito problemática incógnita, que por isso deveria merecer toda a nossa atenção.
– Pensar Isto é que é urgente e decisivo para o nosso futuro, pouco interessa a “fuga” de um dirigente inesperadamente apanhado no assumido deslumbramento (como aconteceu com Cotrim de Figueiredo) com as ideias de Liz Truss, e nas contradições fatais de um liberalismo que, apesar de “culturalmente” triunfante, vive sem apelo a sua fase declinante em termos económicos.
– Daí que não seja de espantar que a “Iniciativa Liberal”, em crise de liderança, balance agora (segundo o Público de 26 de Outubro) entre um liberalismo mais conservador e um liberalismo – imagine-se! – “mais pop”…