WOKISMO E POPULISMO – DA DIREITA À ESQUERDA

                                                                           (Breve Nota)

. Ao ouvir a algazarra dos últimos dias, provocada ao que parece por uma frase do líder do PSD no último fim-de-semana, parece que ninguém é capaz de distinguir entre, por um lado, o que é a “teoria” do género, uma teoria filosófico-sociológica séria, interessante e naturalmente discutível. E, por outro lado, a “ideologia” de género, que é uma amálgama de tópicos de cariz fanático, que se apresenta dogmaticamente recusando o debate e pretendendo impor-se universalmente, como se de um conjunto de verdades indiscutíveis se tratasse quando, na verdade, tudo a aproxima mais de uma nova religião, do criacionismo, por exemplo – mas também se podia aproximar do lyssenkismo soviético -, na sua recusa dos mais elementares dados da ciência, integrando-se assim no que tem alastrado como uma nova peste pelo mundo ocidental, sob o nome de “wokismo”.

. Mas se tudo começou na recusa da biologia, a coisa já chegou mesmo – depois de se procurar estropiar a literatura, a filosofia, a história, etc. – à rejeição da física e da matemática! … Não admira por isso que a algazarra em curso – enquadrada pelo tríptico ignorância/boçalidade/alacridade que cada vez mais intensamente caracteriza o nosso espaço público político-mediático – ocorra entre populistas de direita e populistas de esquerda, siamescamente irmanados em impedir qualquer sereno debate sobre a matéria, como efectivamente se impõe fazer – nomeadamente depois dos grotescos, e a muitos títulos sinistros, últimos mandatos no ministério da Educação.

O EXTRAORDINÁRIO LANCE ESTRATÉGICO JOE BIDEN

. E se, afinal, tivesse sido Joe Biden quem organizou tudo? O seu notável discurso de ontem, dia 24 de julho, veio confirmar a pertinência desta pergunta, que faço desde a sua renúncia, no passado dia 21.

. Com a renúncia de Joe Biden à sua recandidatura, estabeleceu-se imediatamente um consenso mais ou menos universal, que consistiu basicamente em dizer que ele não tinha conseguido resistir às múltiplas pressões – dos barões do partido democrático, dos media, dos financiadores, do lobby de Hollywood, etc. – para desistir da sua disputa à Presidência dos EUA, depois do fatídico debate com Donald Trump no dia 27 de junho.

. É um consenso compreensível, dado o grau de estupidez sistémica – a expressão é do filósofo Bernard Stiegler – em que hoje vive o espaço público, nacional ou global, dominado pelo imediatismo, pelo presentismo e pela excitação, quando o devia ser pela prudência, pelo enquadramento histórico e pelo conhecimento. Mas o impensar é o que hoje domina. Seria um consenso possível, mas que na verdade rapidamente se revela inverosímil, bastam uns minutos de reflexão para o perceber.

. É que para tal ser verdade, seria preciso atribuir a Joe Biden uma senilidade aguda, que o impedisse de ver a evidência, ou seja, as irremediáveis consequências do seu catastrófico debate com Trump no dia 27 de junho. O que sempre me pareceu ser completamente contraditório e incompatível com diversas das suas intervenções posteriores, sem dúvida a exibirem as marcas de um visível envelhecimento (lapsos, cansaço, etc.), mas também a revelarem, no essencial, um sólido domínio dos complexos dossiers que abordava.

. Penso por isso exactamente o contrário da opinião que se generalizou – penso que Joe Biden, com a sua experiência política de muitas décadas e com a constante argúcia de que sempre deu provas na sua longa carreira, foi quem mais depressa percebeu e avaliou o irremediável, isto é, o trunfo que com o debate de 27 de junho ofereceu ao seu detestado adversário, abrindo caminho a uma inevitável derrota face a Trump nas eleições de Novembro.

. E que era sobretudo isso aquilo que Joe Biden mais temia: que, depois da sua difícil e histórica vitória de 2020 e de um mandato que ele avaliava – apesar de alguns pesados desaires – como muito positivo para os EUA e para o mundo, tudo acabasse numa humilhante derrota frente ao seu tão desprezado adversário. E por isso procurou desde logo uma saída, que permitisse uma continuação democrata na Presidência dos EUA.

. Foi a essa tarefa que, a meu ver, ele dedicou todo o seu talento e toda a sua perspicácia política a partir de então, traçando  a estratégia que haveria de conduzir à “surpresa” do passado dia 21, decidido sobretudo a evitar uma guerra de egos e de ambições que se multiplicavam no seio do partido democrático, um partido completamente atordoado e destroçado pela situação, uma guerra fratricida que seria inevitável se ele renunciasse sem mais,  logo a seguir ao debate de 27 de junho, à sua recandidatura.

. Mobilizando a sua vasta experiência política, o seu minucioso conhecimento do dispositivo comunicacional e o seu apurado sentido dos timings, o que Joe Biden fez desde então foi definir e conduzir uma estratégia que assentava em dois pilares: o controlo do tempo político, por um lado, e a opção sobre quem se lhe seguiria, que fosse capaz de derrotar Trump, por outro lado. Pilares indissociáveis, pois só o controlo do tempo político permitiria a Joe Biden tornar incontornável – como veio a acontecer – a sua escolha sobre quem o substituiria na corrida presidencial.

. E foi precisamente o que veio a acontecer: enquanto crescia o furor mediático e algazarra política, entre os dias 27 de junho e 21 de julho, Joe Biden prosseguiu paciente e discretamente a sua estratégia, gerindo o tempo político, fazendo centenas e centenas de contactos decisivos e, sobretudo, avaliando e consolidando a sua opção por Kamala Harris. Construindo uma teia estratégico-política que surpreenderia todo o mundo.

. Só assim se compreende a lógica do que aconteceu depois: Joe Biden decide renunciar no dia 21 de junho, sem aviso e sem indicar qualquer “herdeiro” (como se não o tivesse…), para algum tempo depois, num segundo comunicado, quando ele bem sabia que já ninguém no partido tinha tempo para se candidatar – nem sobretudo estrutura de campanha ou financiamentos, que legalmente só podiam transitar de Biden para Harris -, anunciar então a sua opção pela sua vice-Presidente.

. Como também só assim se compreende que se tenha assistido, mais do que ao anúncio de uma candidatura, à consagração quase instantânea de Kamala Harris.  Uma consagração que, com a sua habitual excitação noticiosa os media ajudaram a consolidar, sem perceberem a teia estratégica que na realidade há muito os comandava. E foi assim que bastaram cerca de 12/18 horas para se passar, de uma tímida e confusa conversa mediático-política sobre as dificuldades da candidatura de Kamala Harris, à sua completa entronização, ao júbilo generalizado de todo o partido – militantes, senadores, governadores estaduais, etc. – , com a transferência imediata da grande maioria dos delegados de Joe Biden à Convenção de meados de Agosto para Kamala Harris – que agora vai ter que mostrar se está à altura das expectativas de Joe Biden e de derrotar Donald Trump a 4 de novembro.

. Com este sucesso político da sua estratégia, Biden pôde – com todas as fragilidades e limitações humanas que, na verdade, ele conhece melhor do que ninguém – retomar e continuar o seu mandato, com a esperança de não voltar a ter na Presidência o seu velho – e agora o “velho” é ele! – adversário Donald Trump.  Foi talvez o último lance de um grande político, que soube fazer da sua longa carreira um permanente e modesto exercício de aprendizagem, longe das miragens heróicas – como diria Daniel Innerarity – que caracterizaram a política noutros tempos. Num tempo em que os heróis vão dando lugar a idiotas ou a palhaços, é reconfortante ver alguém, como Joe Biden, afirmar-se como um sábio da política.

. O oposto, diga-se em conclusão, do que tem acontecido em França com Emmanuel Macron que, convencido que era o Júpiter de uma nova era política, lançou – com uma imprudência infantil que nele se combina com uma cega arrogância – o seu país num caos político, social e cultural que só vai reforçar aqueles que ele dizia querer combater, sobrevivendo por agora agarrado à oportuna boia de uma … “trégua olímpica”.

OS EUROBEATOS E A IMPOTÊNCIA POLÍTICA

 

  • O assunto já devia fazer sorrir, de tal modo é fruste e evidente o estratagema. Mas o facto de isso não acontecer e de, pelo contrário, se ter tornado em matéria pretensamente séria, diria mesmo “de Estado”, mostra como o espaço público português – nisto como em quase tudo, completamente mimético em relação ao que se passa pela Europa – se encontra completamente tóxico-anestesiado.
  • Refiro-me ao papão da “extrema-direita”, ressuscitado pela mão, ou melhor, pela boca, de muita esquerda nos últimos 10/20 anos, num mimetismo histórico tirado quase a papel químico com o que se passou nos anos 70/80 com a “extrema-esquerda”. Curiosamente, no mesmo período em que a esquerda – fosse ela radical, social ou liberal – não conseguiu formular uma só ideia nova, minimamente alternativa às múltiplas metamorfoses financistas do capitalismo. Bem pelo contrário – com a excepção cada vez mais domesticada, e meramente vocal, da esquerda radical – todas se converteram a essas metamorfoses em nome de um tão conveniente como misterioso “sentido da história”, que ajudou poderosamente a acabar com todas as já definhadas ideologias “clássicas”, transformadas agora em meras etiquetas do chamado jogo democrático.
  • Jogo este que, note-se, hoje em dia escapa cada vez mais à vontade dos povos, reduzido que foi às suas constantes encenações mediáticas, como se de um entretenimento de marionetas se tratasse, comandadas atrás do palco por hábeis mãos e eficazes ventríloquos. E com o fim das ideologias, a diabolização – essa tão enraizada tradição cristã e ocidental – tomou o lugar da argumentação e do debate, agora é satã que está por todo o lado, numa essencialidade de tal modo intensa que basta pronunciar certas palavras para, conforme os casos, inquietar ou aquietar os espíritos. Como se a lucidez política tivesse dado lugar à conhecida causalidade diabólica dos bodes expiatórios: para uns é a imigração, a corrupção e as elites, para outros é a extrema-direita, o fascismo, às vezes meso o nazismo, além das habituais e múltiplas “fobias”.
  • Todos convergindo, no entanto, embora com perspectivas opostas, na consagração de regressões mentais persecutórias e quase psicóticas, como a dos crimes de ódio por “dá cá aquela palha” e outros dislates “wokistas” do género, que lamentavelmente começam a lembrar, a quem por lá passou, os tiques e as práticas de uma ditadura afinal não muito distante…
  •  A esta luz, foi lamentável, a roçar o patético, o espectáculo dos nossos euro-beatos candidatos às eleições de 9 de junho, todos entoando os mesmos salmos e larachas, sem conteúdo nem consequências…Eleições em boa verdade bizarras, as únicas no mundo que não têm contraponto num povo, uma vez que o “povo europeu” continua a ser uma entidade política inexistente. E com candidatos que ninguém sabe o que vão fazer – alguém se lembra do que fez algum dos que lá estiveram nos últimos cinco anos? -, sempre acolitados pelos habituais comentadores ruminantes (ou vice-versa), todos convergindo no mesmo evangelho, todos exibindo o vazio sideral em que hoje se faz a política, toda ela centrada em permanentes guerrilhas contra inimigos inexistente, ou quase (é altura de lerem o belo livro de Italo Calvino “O Cavaleiro Inexistente”), uns e outros mutuamente transformados nos bodes expiatórios de todas as impotências da política, venha ela de que quadrante vier.
  • E assim se entregam todos, uns intencionalmente outros cegamente, nas mãos do único extremismo que, na verdade garrota hoje o ânimo, a imaginação e a vontade dos povos, que é o “extremismo do centro”, um extremismo que é a grande novidade política das últimas décadas, que trocou a histérica radicalidade dos discursos inflamados pela invisíveis profundidades da servidão voluntária, dando forma a um “europeísmo” que se tornou na única ideologia possível, que todos aceitam, num verdadeiro consenso de manada.
  • Esquecendo assim – ou ocultando-os, com uma astuta perfídia – factos tão determinantes e decisivos, como já aqui lembrei há dias, como o da natureza não democrática – quantas vezes anti-democrática! – da União Europeia, o da completa artificialidade do Parlamento Europeu, o do desmantelamento das soberanias nacionais, o da substituição dos direitos dos cidadãos pelos caprichos do individualismo sem limites, o da ilegítima promoção de todo o tipo de minorias, o da na crescente sacralização dos procedimentos normativos à revelia do poderes dos parlamentos nacionais, o do cosmopolitismo alucinado que impede a U.E. de definir, ou sequer de pensar, quaisquer fronteiras – e a lista poderia continuar, a lembrar que de nada, absolutamente nada disto, se falou na campanha eleitoral para as eleições do próximo dia 9 de junho.
  • Acabo com a única certeza que tenho: que a abstenção, isto é, esse comportamento que se situa entre a indiferença e o desprezo pela política e pelos políticos, vai ganhar largamente estas eleições. Para lá dessa certeza, só adianto o palpite que em breve muita coisa pode mudar, confirmando que, apesar de tudo, o futuro ainda nos pode reservar algumas surpresas, conjugando inesperadamente o que Maquiavel chamou a “fortuna” e a “virtù” – quem sabe?

ACUSO A PARCIALIDADE DA JUSTIÇA E A IMPUNIDADE DE QUE GOZA

                      
                          (Da “Introdução” ao livro com o título acima, Ed.70, 2024, pp.13-19)
  • Partamos de um facto, de um facto tão indiscutível como intolerável: a justiça é hoje em Portugal o único – absolutamente único – sector que beneficia do privilégio de uma total impunidade na acção dos seus profissionais, seja qual for o domínio – e são muitos: investigações, inquéritos, medidas preventivas, ), recursos, etc. – em que a sua acção se exerce.
  • Em qualquer âmbito da sua vida, pessoal, social ou profissional, os portugueses pagam pelos erros ou crimes que cometam, sejam eles grandes ou pequenos. Pelo contrário, o poder judicial (e isto aplica-se tanto ao Ministério Público como à magistratura judicial) pode cometer todos os erros – e até crimes – que está seguro, salvo em raríssimas excepções, que não terá de responder por eles. (Sei bem que só a magistratura judicial beneficia formalmente desta impunidade, mas na verdade – isto é, na prática – o mesmo acontece com o Ministério Público, como todos sabemos, temos visto e adiante se argumentará). É esta situação de absoluta excepção que não pode continuar por mais tempo: urge pôr-lhe termo, com determinação, lucidez e coragem.
  • Mas o poder judicial não só é impune, como a sua legitimidade, nomeadamente na vertente judicial, é cada dia mais controversa, questionável e – felizmente – questionada, uma vez que ela não tem origem directamente na vontade do povo, como acontece com os poderes executivo e legislativo, mas apenas indirectamente, através daqueles outros poderes, conforme o disposto constitucionalmente. Não se lhe nega, pois, legitimidade, o que se afirma é a evidência da sua progressiva fragilidade institucional e a crescente contestação que tal facto suscita, a exigir que se tirem consequências de tal situação. Ou seja, é altura de, tal como tem acontecido com os demais poderes, se analisar com detalhe, se escrutinar com rigor e se reformar com coragem a justiça portuguesa, nas suas diversas componentes.
  • Até porque, ungida pela impunidade divina em que tem vivido, como se uma aura de natureza verdadeiramente sobrenatural a envolvesse, o poder judicial pretende apresentar-se aos olhos do país, perante a crise que indiscutivelmente têm vindo a abalar os outros dois poderes, o legislativo e o executivo, como um poder naturalmente – eu diria mesmo, geneticamente – diferente dos demais, dotado de uma capacidade regeneradora e salvífica em relação aos problemas do regime democrático.
  • Pura ilusão que, infeliz mas naturalmente, os seus cúmplices mediáticos alimentam constantemente, seja a que o pretexto for, de tal modo ela lhes convém. Mais, pura mentira, como se viu nos países que cederam a essa miragem, basta olhar, entre tantos outros exemplos possíveis, para o que de absolutamente sinistro se passou em Itália com a operação “Mãos Limpas”, em Espanha com Baltasar Garzón ou, mais recentemente, no Brasil com Sérgio Moro.
  • Todos estes casos mostram que a judicialização da política, se não for travada – e os sinais da sua progressiva implantação entre nós estão todos aí, todos os dias e por todo o lado – evoluirá para a judicialização generalizada de toda a vida social, profissional e pessoal dos cidadãos. Trata-se de um enorme logro, porque na verdade uma tal judicialização é um biombo que oculta a cínica impunidade do poder judicial e as suas nefastas consequências, tanto para a qualidade da democracia com o para o rigor da justiça.
  • O facto de que temos de partir, e de vez, é que os agentes da justiça, sejam juízes ou procuradores, são seres humanos absolutamente comuns e que, como todos os seres humanos, eles erram e cometem erros condenáveis. (…) Trata-se, em ambos os casos, de seres humanos que nada, a não ser uma ficção que é tempo de desmistificar e abandonar, distingue dos demais, tanto em qualidades como em defeitos. E que por isso, eles, exactamente como todos os outros cidadãos, têm de responder pelas suas decisões e actos. E como as suas funções são de serviço público, e exercidas em nome do povo, essa responsabilização tem que forçosamente ser pública, para ser louvada quando for de louvar, e punida quando for de punir.
  • Caso contrário estaremos, em pleno século XXI, a criar uma verdadeira nova casta de inimputáveis, senhores de uma acção e de um juízo inescrutáveis, verdadeiramente irresponsáveis, no sentido mais literal e profundo do termo. E não será, não nos iludamos também aqui, nenhum Conselho Superior (do Ministério Público ou Magistratura, instituições marcadamente corporativas, a primeira explícita e integralmente, a segunda implícita e “sorrateiramente”) que terá capacidade, e muito menos vontade, de alterar esta situação de escandaloso privilégio. Bem pelo contrário, esses “conselhos” existem hoje apenas para iludir os cidadãos, apresentando-se como uma instância de apelo para os que se considerem injustiçados, quando a sua verdadeira missão é, na realidade, com traços da mais negra retórica, a de garantir a perpetuação da impunidade do poder de onde os seus membros, todos eles, são oriundos, numa verdadeira conspiração corporativa contra o direito dos cidadãos à justiça, tal como está constitucionalmente consagrado.
  • Tudo isto foi bem ilustrado no Tribunal de Relação de Lisboa em 2020, pelas múltiplas ilegalidades (corrupção, abuso de poder, entre outras) nele detectadas e publicamente denunciadas, que levaram mesmo a que se abrisse um inquérito por “abuso de poder” em relação ao então Presidente deste tribunal, o desembargador Orlando Nascimento, e que acabou por implicar também o anterior Presidente, o desembargador Luís Vaz das Neves. Isto no seguimento da conhecida “Operação Lex”, em que estiveram em causa – e foram provadas – centenas de situações de viciação na distribuição dos processos, compadrios e conluios secretos, etc., numa panóplia de ilegalidades que mais fazem lembrar um gang criminoso do que um tribunal – ainda por cima dito “superior”!
  • Mas o resultado final foi, como seria de esperar…nada, ou melhor uma conveniente prescrição, em 2023, da já levíssima pena (120 dias de suspensão!) a que o Conselho Superior da Magistratura tinha condenado o desembargador Orlando Nacimento, em 2021, prescrição esta decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça (que, note-se, é também presidido pelo Presidente do referido Conselho Superior da Magistratura, numa ubiquidade corporativa que deita por terra qualquer pretensão de isenção e fere de morte a credibilidade da instituição), não faltando quem aponte que tal foi feito ao arrepio da lei, uma vez que que tal prescrição não era possível por ainda estar a correr outro inquérito contra o desembargador Orlando Ribeiro, como a jornalista Mariana Oliveira detalhadamente explicou em diversos textos publicados no jornal “Público” de 6, 7 e 23 de Setembro de 2023.
  • Ora, como muitos estudos já o demonstraram (veja-se, por exemplo, o instrutivo “Handbook of Political Corruption”, de Paul M. Heywood), quando no topo de uma instituição reina a ilegalidade, a corrupção ou o abuso de poder, estas características espalham-se, irradiam, disseminam-se com facilidade por toda a instituição, pondo globalmente em causa a sua credibilidade e a sua isenção. Foi de resto esta a situação que a Presidente do Tribunal de Relação de Lisboa que sucedeu ao desembargador Orlando Nascimento, a desembargadora Maria Guilhermina de Freitas, implicitamente mas indiscutivelmente reconheceu, quando no seu discurso de posse, a 21 de Outubro de 2020, afirmou como sua primeira missão a de “recolocar este Tribunal de Relação de Lisboa no lugar de prestígio que merece” – tarefa talvez impossível sem profundas alterações que não referiu, mas que só se torna evidentemente necessária quando o referido prestígio se encontra minado ou destruído.
  • Foi ao chegar a estas graves conclusões, e depois de muito reflectir sobre elas, que me decidi a escrever este libelo contra a justiça portuguesa. Mas só cheguei a este diagnóstico a partir de uma experiência pessoal, de cerca de dez anos, de um sector que eu mal conhecia, sobre o qual tinha ouvido muitas e muito díspares opiniões, mas com o qual – tirando um pequeno e irrelevante episódio – não tinha tido, até então, qualquer contacto. Para compensar esse desleixo, ou negligência, a imersão agora foi total. E o resultado desta imersão foi a descoberta, que sinto que como cidadão devo expor publicamente ao país, que a justiça portuguesa vive na maior podridão ética, num ziguezague de puras subjectividades narcísico-despóticas, sem critérios nem valores, cada vez mais entregue aos delírios mediáticos de um wokismo inquisitorial que se tem vindo a difundir por todo o lado, mas que – pelo contrário – deveria encontrar no poder judicial uma muralha de aço.
  • Este é, pois, o livro de um cidadão que, ancorado na plenitude dos seus direitos, analisa serenamente a justiça que falsamente o acusou, denunciando o desprezo que ela revela em relação a princípios que diz defender, como na verdade estaria constitucionalmente obrigada a fazer, mas não faz. De um cidadão que, após mais de dez anos de assídua frequentação dos diversos loca infecta do poder judicial – dos seus meandros, procedimentos e personagens -, ficou convencido que a justiça portuguesa constitui hoje o maior problema do país, configurando-se como o mais grave cancro da República e do seu regime democrático, no momento em que se celebra o seu cinquentenário.
  • E faço-o com a convicção que falo em nome de muitos portugueses, injustiçados de vários modos, quase sempre sem voz e na maior parte dos casos sem meios para fazer ouvir a sua imensa revolta e a sua justa cólera contra a justiça portuguesa, a parcialidade e a impunidade em que os seus agentes actuam. O que constitui uma excelente ocasião para uma reflexão de fundo sobre a calamitosa situação em que, como repetida e abundantemente temos verificado nos últimos tempos, vive a justiça portuguesa, e sobre a imperativa mudança do seu rumo, sem dúvida a mais urgente para o futuro do regime democrático instaurado há 50 anos.
  • Dito de outro modo: este não é um livro de jurista, de filósofo nem de académico. É, repito, o livro de um cidadão revoltado com a falsa justiça que gangrena o país vivendo na impunidade mais total e na parcialidade mais inescrutável. De um cidadão que se viu martirizado, com os seus dois filhos menores, por um processo que se arrastou nos tribunais durante mais de dez anos, com base numa falsa acusação que – como a Sentença de absolvição do seu julgamento no Tribunal Criminal de Lisboa deixou absoluta e cristalinamente claro, Sentença que foi reiterada por mais duas vezes – não apresentou uma só prova documental, um único testemunho factual, uma simples perícia técnica. Nada – mas que os chamados “tribunais superiores” decidiram posteriormente abalroar completamente, transformando arbitrariamente essa absolvição por três vezes confirmada numa condenação iníqua, em nome de subjectivas opções doutrinárias, tão eticamente fraudulentas como ideologicamente radicais.
  • E porquê? A resposta é triste, mas – como adiante veremos – simples e inequívoca: porque temos uma justiça que abdica, com o maior desplante e a maior arrogância, do sagrado princípio de presunção de inocência, princípio que está na base, não só da nossa democracia como da nossa civilização, em benefício do inconstitucional e potencialmente criminoso princípio de verdade da vítima (ou se se preferir, o princípio de presunção de culpa), abrindo assim caminho à selva dos fanatismos mais cegos, bem como às ideologias mais celeradas.

                                                         ***********************

 

                    ÍNDICE do LIVRO

 

                                  I. ACUSO

1. Intolerável impunidade, fanática parcialidade

2. O rei vai nu!… Todos o dizem, mas ninguém faz nada

3. Esquecer ou repensar Montesquieu?

 

                               II. OS FACTOS

        E O PRINCÍPIO DE PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

1. Os acontecimentos e o circo mediático

2. O julgamento: de Janeiro de 2016 a Dezembro de 2017

3. A sentença de absolvição

 

                             III. AS INTERPRETAÇÕES

         E O PRINCÍPIO DE VERDADE DA VÍTIMA

1. Dois acórdãos do Tribunal da Relação:

A estratégia de empatar… e mais duas sentenças de absolvição

2. Um novo acórdão do Tribunal da Relação:

o apogeu da manipulação, da parcialidade e da inconstitucionalidade

3. Tribunais Superiores:

a consagração de um novo princípio de presunção – o de verdade da vítima

e de presunção de culpa do arguido?

 

                          IV. PARA ONDE VAI A JUSTIÇA?

1. Judicialização da política e politização da justiça

2. Estado de direito ou direito contra o Estado?

3. A justiça nas teias da vitimização

 

Bibliografia 

Nota final 

A EUROPA, ENTRE A ILUSÃO E A TRAGÉDIA

  • . A apresentação dos “desígnios” e “programas” dos vários partidos para as eleições europeias, com destaque para o principais, foram mais uns daqueles momentos de penosa e previsível retórica, tão  ritual como vazia, que cada vez mais caracteriza o nosso tão saudado europeísmo.
  • . Insisto numa ideia que há muito defendo:  o famoso europeísmo português, sempre apresentado como o mais forte da Europa, deve-se simplesmente à conjugação de dois factores: por um lado, à ignorância do que é de facto a União Europeia, nas suas características fundamentais, no seu funcionamento e nas suas consequências. E, por outro lado, ao torrencial fluxo de milhões de euros que de lá vêm quotidianamente desde 1986, que é qualquer coisa à volta de dez milhões de euros por dia!…Que infelizmente é encarada, tanto pelos responsáveis políticos como pela generalidade dos cidadãos, mais como uma espécie de mesada de adolescente do que como um estímulo para o lançamento de projectos ousados e bem estruturados, que finalmente reformassem o país. É por isso que penso que a caracterização do europeísmo como o “ópio dos europeus”, proposta por Tony Corn, tem em Portugal o seu mais eloquente exemplo.
  • . Digam o que disserem os partidos, os políticos ou os comentadores (categorias na verdade cada vez mais indiscerníveis) sobre a “enorme” importância das próximas eleições europeias de 9 de Junho, a verdade é que ninguém até hoje deu a este “enorme” qualquer substância real – tudo acabará na mais puída e estafada laracha europeísta, serão eleições nacionais, ponto final. Razão tem, pois, a meu ver, José Pacheco Pereira – que alia à razão a sua experiência como deputado europeu -, quando na sua última crónica (Público, 18.05.2024) diz que as eleições europeias serão sobre a situação portuguesa. É verdade, e é verdade aqui como em quase todos os países, esta Europa sem povo europeu tornou-se numa ficção tão mais mainstream (já ninguém nem o PC ou o Bloco a contestam, todos querem agora “melhorá-la!…) quanto mais opacamente burocrática, e não democrática, se foi tornando. Além, claro, de simultaneamente se ter tornado também no conveniente bode expiatório de todas as incapacidades e fracassos dos governos nacionais.
  • . Quem melhor colocou o actual  problema europeu, nos seus em termos de verdade foi,  J.M.Teixeira Fernandes, ao enumerar os três riscos que a União Europeia corre actualmente e a colocam na posição  de maior fragilidade desde a sua criação, em 1958 – o risco militar e de segurança, o risco económico e o risco de conflitualidade interna (Público, 18.05.2024), curiosamente todos eles acentuados pela controversa presidência de Ursula von der Leyen, feita de constantes e perigosos atropelos não só às funções que os tratados lhe atribuem, como às prerrogativas do Conselho Europeu, frequentemente colocado perante factos consumados. Enquanto a Comissão, no seu todo, conhece um inédito apagamento, realmente nunca visto – quem, no “povo europeu”, conhece hoje o nome de algum dos comissários da Comissão Europeia?
  • . A Europa vive assim entre a ilusão e a tragédia, ou seja, por um lado, em estado de negação dos seus mais graves problemas; e, por outro lado, numa situação em que só lhe resta continuar porque não se vê qualquer solução para eles – seja (ainda…) os da moeda única, o da panne do crescimento ou o da ausência de segurança, sempre a patinar nas suas opções políticas, nuns casos fingindo agir (no digital, na defesa, na imigração), noutros dizendo não importa o quê ( na energia, no alargamento, na agricultura, na habitação).
  • . Ora, nesta situação, sejam quais forem as reservas em relação às políticas de Emmanuel Macron, impõe-se reconhecer que o presidente francês tocou mesmo na ferida quando, depois do seu “discurso da Sorbonne” de 25 de Abril passado, declarou em entrevista à revista Economist  que, se a Europa não assumir uma profunda revolução interna que responda aos riscos atrás referidos, corre o risco de entrar numa espiral infernal que a conduza – a expressão é de Macron – à sua morte.
  • .Tudo isto reforça a lucidez e a pertinência das perspectivas de homens como Ghislam Benhessa, professor de Universidade de Estrasburgo, que há muito situa na natureza não democrática da União Europeia, na artificialidade do Parlamento Europeu, no esmagamento das soberanias nacionais, na substituição dos direitos dos cidadãos pelos caprichos do hiper-individualismo, na promoção de todo o tipo de minorias, na sacralização dos procedimentos normativos à revelia dos parlamentos nacionais, no cosmopolitismo do “ilimitado” que a impede de definir quaisquer fronteiras, alguns dos factores decisivos da tragédia europeia.(Leia-se o seu recente livro On marche sur la tête)
  • . Porque é de uma tragédia que se trata quando se lida com uma situação dramática para a qual não se vê qualquer solução. É o que, rebobinando uma miríade de ilusões, se passa hoje com “a nossa” Europa, parecendo aceitar-se que, como escreveu Walter Benjamin, a catástrofe acontece quando “as coisas seguem os seu curso” – é talvez para isso que servirão as eleições do próximo dia 9 de junho.

O PÓS-POPULISMO QUE SE ANUNCIA…

  • . A transformação em curso do populismo europeu já tem nome – pós-populismo, e ele deve-se a Thibault Muzergues, que acaba de o baptizar com o livro Post-populisme – la nouvelle vague qui va secouer l’Occident.
  • . A designação revela duas coisas: que há cada vez mais quem compreenda que se está a lidar com algo de efectivamente inédito, novo, no panorama político ocidental, e que é importante tentar compreendê-lo com novas abordagens e novos conceitos. Mas também revela que ninguém sabe muito bem o que lá vem, o que o título do livro na verdade reconhece ao apontar para uma genérica “nova vaga que vai abalar o Ocidente”, mas cujas características a leitura das suas 249 páginas não consegue definir, apontando para alguns traços sem dúvida pertinentes – voltaremos ao assunto – , mas insuficientes para se perceber em que consiste essa tal vaga.
  • . Esta é, de resto, uma das características de todos os prefixos “pós” que, nas últimas décadas, se multiplicaram a um ritmo intenso – pós-verdade, pós-democracia, pós-feminismo, pós-racial, etc. -, desde que em 1977 o teórico da arquitectura Charles Jencks cunhou o primeiro “pós”, com a expressão “pós-moderno”. Mas o que desde então se foi tornando cada vez mais evidente, foi que o uso deste prefixo traduz sobretudo a confissão da dificuldade, ou mesmo da incapacidade, de caracterizar com rigor um fenómeno, uma fase ou uma época. E não será por acaso que a inflação deste prefixo cresceu a par com o eclipse de valores e de referências que permitissem enquadrar e definir o tempo das novas expectativas e experiências, tanto individuais como colectivas, que entretanto se multiplicaram por todo o mundo.
  • . O que aconteceu foi que desapareceram os “ismos”, muito ligados a utopias e ideologias, e sempre focados no futuro. E que eles foram substituídos pelos “pós-“, que se fixam num presente interminável, elástico, ancorados num passado que se mantem afinal como a única referência estável e partilhável, ainda que cada vez mais vazia à luz de um tempo novo, cheio de inesperadas singularidades, mas que ninguém consegue definir de um modo minimamente preciso e consensual.
  • PORTUGAL BIPOLAR? –  Ao mesmo tempo que as ruas se encheram de multidões festivas no dia 25 de Abril, os estudos de opinião publicados na ocasião dão um retrato do país bem diferente, desiludido com os resultados obtidos nestas últimas décadas. Assim, o Europeran Social Survey, avaliando o estado de espírito dos portugueses a partir de onze critérios, só identifica dois em que a satisfação é maior do que a desilusão: nos que se referem à realização de eleições livres, por um lado, e à liberdade para se poder criticar livremente o poder, por outro. E no podium da desilusão fica – o que é muito grave, mas não surpreende – a justiça.
  • . E o mesmo também se lê numa sondagem da AXIMAGE divulgada na véspera do 25 de Abril, que refere que só um terço dos portugueses acredita que a sua vida poderá melhorar nos próximos tempos. E nesta sondagem espreita um preocupante, mas previsível, descontentamento maioritário com a democracia, que cresce no sexo feminino e nos jovens. (O que está em sintonia com a queda de 18 lugares – de 8º para 26º, entre 2019 e 2023 – da democracia portuguesa no ranking mundial das democracias, divulgado em Março pelo V-Dem Institut, da Universidade de Gotemburgo). A opinião sobre os políticos afunda-se em valores muito negativos, quase nos 70%, e no podium dos problemas mais graves aparece de novo, agora acompanhada pela habitação, a situação da justiça.
  • . Esta “bipolaridade” devia fazer pensar os políticos, tanto os do governo como os da oposição, sobretudo num momento em que o país parece ficar refém de lances partidários de uma intolerável irresponsabilidade,  que está a transformar o Parlamento na arena de uma conflitualidade cada vez mais ritualizada, como se de um mero espectáculo de entretenimento, sem consequências, se tratasse.  E para pensar aconselho a recente entrevista de uma notável filósofa francesa, Myriam Revault d’Allones,  (Público, 28.04.2024), de onde destaco o seguinte passo, onde se cruza um diagnóstico certeiro com um desafio oportuno: ”As sociedades democráticas são frágeis precisamente porque estão expostas ao confronto de opiniões e de usos, e isso não é uma critica, mas algo muito importante, fraqueza e fragilidade não são a mesma coia, as democracias são frágeis, mas é isso que as torna grandes. (…) A grande dificuldade hoje é o facto de a democracia já não ser vista como desejável por muitos cidadãos dos estados democráticos.”

O REGRESSO DE MARCELO-GELATINA: O WOKISMO ATERROU NO 25 DE ABRIL DE 2024?

  • – O wokismo aterrou oficialmente e em grande em Portugal, no 25 de Abril de 2024. Pressentia-se que tal estava iminente, mas é lamentável que tenha sido pela mão do Presidente da República, e no contexto do cinquentenário do 25.04.1974, que tal tenha acontecido.
  • – A coisa andava por aí há muito tempo, entre os media e a política, a “cultura” e as universidades, eu já a tinha sinalizado aqui há mais de um ano, em “A peste ameaça a cidade” (01.02.2023). Agora que um dos principais temas wokistas viesse a ser assumido pelo Presidente da República é, no mínimo, penoso e confrangedor. Como o é o apoio que tal dislate logo teve de personalidades e de partidos de uma esquerda fandanga cada vez mais acéfala que, depois de perder o sentido e o apoio do povo se dedica a estas frivolidades reacionárias e anacrónicas – e a outras parvoíces conexas até mais graves.
  • – Como talvez alguns se lembrem, nunca me iludi com o político Marcelo Rebelo de Sousa. Que, nos tempos em que estive no governo – era ele líder do PSD, na oposição, já lá vão quase 30 anos – designei, em entrevista ao Expresso (05.04.1997), como “pura gelatina política”.  Com o tempo fui variando na minha avaliação e adjectivação da sua actividade política, mas esta foi sempre a principal matriz: Marcelo é pura gelatina política. O que não foi fácil, sobretudo nos seus períodos de pico de popularidade, em que o todos, com o comentariado nacional à frente, se ajoelhavam perante ele, numa manifestação de vassalagem tão provinciana como conformista, consagrando as “selfies” como o apogeu da política!…
  • – Nada mais direi, até porque já houve quem dissesse tudo o que de importante havia para dizer sobre os últimos dislates marcelistas, como por exemplo José Pedro Marques, a quem se devem na matéria intervenções de grande coragem e lucidez, e que agora escreveu certeiramente que, com as suas recentes declarações, o Presidente da República “vai no arrasto do wokismo que grassa nas sociedades ocidentais e que também toca certos sectores do mundo católico. Resta saber se Marcelo vai na onda por se ter convertido sinceramente ao wokismo ou apenas porque tem a irresistível necessidade de falar e de ser falado.” (Observador, 26.04.2024). Alternativa que, para um político de gelatina, na verdade não se põe, para ele é tudo a mesma coisa, um incontinente magma de tretas, sem coerência nem opções. Pela minha parte só acrescentarei que os factos, sobretudo os do último ano,  vão colocando o Presidente da República numa insólita situação de auto-destituição, num “match-point” em que tudo pode acontecer…
  • – E tudo pode acontecer porque:
  • . Em primeiro lugar, este novo ciclo político, decorrente das eleições de 10 de Março, começou muito mal, por um lado com as trapalhadas do Governo sobre o IRS, por outro com a aliança de facto PS/CHEGA na votação parlamentar sobre esta matéria. O que anuncia tensões partidárias que, muito provavelmente, exigirão a intervenção de um Presidente da República discreto, sagaz e eficaz, o que manifestamente não existe.
  • . Depois, porque a Europa caminha para a irrelevância global, como Emmanuel Macron há dias claramente explicou no seu longo e bem fundamentado  Discurso da Sorbonne, ao denunciar uma União Europeia afogada numa retórica balofa e num persistente bloqueio estratégico nas matérias mais decisivas ( energia, segurança, investigação, etc.). Mas por cá o que se discute são os e as cabeças de listas dos partidos, realmente mais nada, ainda não se ouviu uma só palavra sobre os tremendos problemas que a Europa enfrenta – e o que fazer para os ultrapassar.
  • . Por fim, porque, por muitas “avenidas da liberdade” que se encham em dias de justificadas festividades, o facto é que a democracia, como poder de acção colectiva do povo sobre as suas opções e o seu destino, recua aceleradamente por todo o lado, numa desafeição que é alimentada pelas desilusões com as promessas de uma representatividade desacreditada, de um crescimento impossível e de um carrossel de anúncios de transições sem fim – climáticas, industriais, digitais, etc. – nem, sobretudo, verdade.
  • – Quando é que se perceberá que a tripla identificação – recente, o fenómeno tem apenas algumas décadas -, no imaginário colectivo contemporâneo, da democracia com o fluxo comunicacional ininterrupto, com o crescimento contínuo e com uma prosperidade ilimitada, conduz o mundo para um abismo sem retorno?

Postscriptum – Bom começo de Aguiar-Branco, a sugerir o óbvio: que a Procuradora-Geral Lucília Gago deve ir ao Parlamento, como foram os seus antecessores Souto Moura, Pinto Monteiro e Joana Marques Vidal. O que em nada belisca a “separação de poderes”, tal como ela é praticada nos Estados verdadeiramente democráticos.

PAÍS RATO

  • . Estamos a chegar, é já na próxima 5ª feira, ao cinquentenário do 25 de Abril de 1974. O contexto é inesperadamente implosivo-regressivo de muitas das chamadas conquistas de Abril – na educação, na saúde, na justiça, no pluralismo de ideias no espaço público, etc.-, e as comemorações anunciam-se, como era de prever, uma mera banalidade de calendário.
  • . É pena, porque o contexto actual de “direitização” do país e do mundo tem um horizonte que traz lá muito mais do que parece – valia a pena pensar nisso, mas o garrote da ignorância, do “comentariado” e do conformismo nacionais bloqueia qualquer perspectiva ou antecipação capazes de sondarem o que lá vem.
  • . Na verdade, vivemos no País Rato, como Jorge Roque sugere no título do seu último livro. Livro que, a meu ver, é o mais incisivo, profundo e lúcido livro que, num singular “modo literário”, se escreveu em 2023 em Portugal e sobre Portugal (edição Maldoror, 56 pp.). Deixo aqui dois extratos, é a minha contribuição para um outro olhar sobre o cinquentenário do 25 de Abril.
  • Ora leiam – e depois leiam mais.
  • 1º Extracto:
  • – “O vinte e cinco agora é a vinte e seis. Usamos cravos na lapela, quem não a tem, como eu, no bolso da camisa ou no decote, nos últimos anos vi autocolantes com cravos impressos, uma solução sem dúvida prática, mas porque usamos cravos afinal? Combinávamos um jantar todos os vinte e quatro, vermelho tinto tal qual os cravos, sorriso largo tal qual a vida, esperança que brilhava e então não era falsa como depois seria. Líamos poemas em voz alta, fazíamos desenhos colectivos com vinho, cinza e café, beatas como pincel, colheres para os traços mais finos, e não havia erro, não havia falha, o que viesse ia bem com aquela alegria. Parecia tudo mais belo, até aquilo em que talvez já não acreditássemos. Parecia tudo diferente, até aquilo que sabíamos que jamais mudaria. Ao aproximar da meia-noite, as músicas do costume nos velhos vinilos, os brindes, as palavras de ordem, talvez a um canto um rosto mais fechado, um olhar soturno cercado pela mágoa, mas passava despercebido e, quem sabe, pouco depois iluminava-se. Sempre fui velho, em cada momento da vida fui velho, mas nesse tempo era jovem sem que o soubesse, feliz sem que o perguntasse. Depois foi sendo sempre mais triste, mais pobre, e nós a entristecer sem perceber, ano após ano mudados no espelho em que parecia que nunca mudávamos. O vinte e cinco agora é a vinte e seis.”
  • 2º Extracto:
  • – “Bem-vindo ao país da morte em vida. Aqui é sempre uma maravilha, bom tempo, praias, diversão e simpatia, a típica brandura meridional temperada com esperteza e vigarice, uma conjugação inesperada, refinada por séculos de adestramento, reside aqui o problema, porque quando dás por isso já não há por onde escapar, ai como é bom viver nesta adorável terrinha, do taxista ao ministro todos os impostores são amigos. Bem-vindo ao país da morte em vida. Aqui tudo se repete, nada se transforma, simula-se, usurpa-se, trafica-se, metem-se cunhas despudoradas para galgar desníveis, praticam-se, como se diz, alavancagens, embora ninguém saiba da alavanca e, para o caso, do alavancado, perfeito idiota que nem supõe que o é, profeta patético elevado a ídolo de carnavais, rodeado de maminhas ao léu e figurantes contratados.” (…) Bem-vindo ao país da morte em vida. Aqui não há critério, não há exigência, não há escrutínio, a realidade é feita de uma matéria mais fluida, uma geleia, uma compota, bem docinha, por sinal, não há como resistir-lhe, a dieta é para amanhã, para o ano, logo se verá, e viola no saco, prezado indignado, neste arranjo de tias e comadres não há debate, não há confronto, não se agitam as águas, heróis do mar, heróis do mar, mas recolhidos à costa, pois o perigo espreita, fantasiar a viagem que não se fará é sem dúvida mais seguro, ó ovo de Colombo ingénito no cu da galinha, ó suprema descoberta irrealizada, como é que ninguém se havia lembrado, tínhamos de ser nós, nação predestinada, todo um novo mundo por revelar à mercê da nossa imaginação indomável.”

ENTRE GUERRAS CULTURAIS E TRANSLAÇÕES POLÍTICAS

  • – É fundamental distinguir duas coisas: o alarido mediático desencadeado a propósito da publicação de um livro. E as especulações suscitadas pela sua apresentação por uma personalidade, no caso um ex-primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, em acelerada rotação ideológica, a tentar apanhar a translação política que varre o mundo ocidental. Mas para isso ainda vai ter que andar muito…
  • – Claro que as coisas estão ligadas e a amálgama era muito provavelmente o objectivo de todos, embora com intenções diferentes. Mas quanto ao livro, para lá da habitual cacofonia túrgida do “comentariado” nacional, o que de mais importante se disse foi que ele viria abrir uma “guerra cultural” em Portugal, embora sem nunca se dizer entre quem, nem quais as posições em conflito, insinuando-se apenas – e percebe-se bem porquê – que será entre progressistas e reaccionários.
  • – Dos extractos mais divulgados do livro Identidade e Família, verifica-se que há de facto muitas ideias reaccionárias, mas que são banais, mais do que conhecidas, e com as quais qualquer democracia minimamente madura – a nossa, não tem 50 anos? – tem de saber conviver sem insultos nem anátemas, que só revelam as enormes fragilidades de quem os profere. E se nuns casos serão teses minoritárias, noutros tratar-se-á talvez de ideias maioritárias, foi sem dúvida isso – porque esse ponto fica agora em aberto – que levou a que se falasse em “guerra cultural”.
  • – Expressão esta que, curiosa e sintomaticamente, ninguém utilizou quando, muito recentemente, o Presidente da República vetou um diploma que, quase clandestinamente, sem debate ou discussão, o Parlamento anterior aprovou em Dezembro sobre “o direito à autodeterminação de género”, diploma que, entre outras normas delirantes, impunha a presença, em todas as escolas, de “olheiros” à procura de sinais de “disforia de género” entre alunos e alunas…
  • – O assunto terá agora, se voltar ao Parlamento, que ser objecto de um sério, alargado e fundamentado debate público, na linha do que aconselharam a seu tempo, tanto a Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida como o Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos.
  • – Mas o sinal ficou, e só não o vê quem não quiser: e o sinal é o de que o wokismo está já a dominar sectores muito significativos da vida nacional. Tal já era visível em várias Universidades e, ainda mais, em diversos media, com de resto tem acontecido em toda a parte, no mundo ocidental. E vamos vendo como ele se impõe também com inusitada facilidade em todas as esferas do poder, seja o legislativo, o executivo ou o judicial. É isto – e não as posições nostálgico-jurássicas que regularmente se farão sempre ouvir, na indiferença geral – que é importante perceber e debater.
  • – Quanto aos movimentos de rotação e de translação política em curso, que estão a alterar todos os parâmetros da acção política, não só em Portugal como em todo o Ocidente, é matéria que tem de ficar para outro dia. Só adianto que, a meu ver, é a combinação desses dois movimentos políticos, ideológicos e civilizacionais, que nos permite compreender o que está realmente a acontecer.

NOVO GOVERNO, EM CONTEXTO DE DELÍRIO MILITARISTA

                                                            

. Os discursos da posse do novo Governo, quer o do primeiro-ministro quer o do Presidente da República, foram um carrossel de previsíveis banalidades. E o “comentariado” que se lhes seguiu saltou logo para o carrossel numa larachada que – com duas ou três excepções – nada teve de analítico ou prospectivo, tudo se resumindo a uma ruminação politiqueira de ditos e reditos.

. Falam, falam, falam, não porque tenham realmente algo a dizer, mas porque são pagos para ocupar, no sentido mais preciso do termo, o tempo catódico que lhes é concedido para – como há anos explicou Frédérique Lay, então presidente da TF1 francesa – tornar os “cérebros dos espectadores disponíveis” para os momentos publicitários, os únicos que na realidade interessam às estações televisivas.

. Porque o que há a dizer sobre a situação política é muito simples: ou o Governo se aguenta, se impõe nas sondagens e consegue ganhar as próximas eleições europeias do próximo dia 9 de Junho com uma margem mais robusta do que a que teve nas legislativas – e nesse caso “tudo é possível -, ou não o consegue e só lhe restará arrastar-se até um fim tão próximo como inexorável. E é tudo, na verdade, que mais há a dizer? O único imprevisto, a meu ver, pode vir da guerra que se anuncia do CHEGA com Marcelo Rebelo de Sousa…aqui a incógnita é de facto grande.

. Entretanto, o “debate” sobre o serviço militar só veio confirmar o estado – afinal talvez tão mau, ou pior, que o da política – do nosso “comentariado”.  Foram conversetas, umas atrás das outras, de um paroquialismo patético, sem uma palavra sobre as incontornáveis condicionantes europeias na matéria, sem qualquer referência a estratégias fundamentais (de defesa, de equipamentos, de tecnologias, de alianças, etc.) e, sobretudo, sobre as implicações sociais e económicas de uma eventual re-militarização do país ou da Europa, que seriam inevitavelmente as de um novo colossal, bem maior do que o de Vítor Gaspar, aumento de impostos.

. Será preciso lembrar que só há Estado Social na Europa porque se deixaram todas as despesas com a sua segurança e defesa para os Estados Unidos, que desde Barak Obama tentam diminuir esse fardo? E que no dia em que essa, digamos, “herança” da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria que se lhe seguiu acabar, e em que a Europa tiver de assumir integralmente a sua defesa, o Estado Social europeu entrará em colapso?

. Percebe-se bem que o que o actual delírio militarista pretende é, por um lado, disfarçar os impasses e fracassos europeus e da Nato na Ucrânia, com as graves consequências que se começam a antecipar. Leia-se a propósito, no Público de ontem, 5 de abril, o oportuno e sagaz artigo “O que é vencer a guerra na Ucrânia?”, de J. M. Teixeira Fernandes, que continua a revelar-se um analista único da situação decorrente da invasão da Ucrânia pela Rússia em Fevereiro de 2022.  E, por outro lado, que todos os poderes apostam agora na estratégia do medo, certos do efeito de domesticação dos seus inquietos e irrequietos povos, lição que aprenderam com a gestão da pandemia do covid-19. Veja-se o caso do Presidente francês E. Macron que, quanto mais dificuldades internas tem, quanto mais os estudos de opinião lhe são adversos – e eles são-lhe brutalmente adversos – mais fala de ameaças externas, mais insiste em bravatas bélicas e mais defende a re-militarização da Europa.

. Neste confuso contexto, nada melhor do que ler o último livro de Emmanuel Todd, La Défaite de l’Occident, onde se mostra como a enorme crise demográfica russa é já uma das suas grandes dificuldades na invasão da Ucrânia, e como ela bloqueia qualquer eventual ambição expansionista. É também aconselhável a leitura do livro de David Teurtrie, Russie – le Retour de la Puissance que, note-se, é de 2021, anterior à invasão russa da Ucrânia, está lá quase tudo o que era fundamental saber para se compreender muito do que se seguiu.

A VERDADE É ESTA

  • A verdade é esta: entramos no mês dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, e depois de um período de altos e baixos entre 1974 e 2000, Portugal vive num declínio que chegou agora a um estado de generalizada indigência, jamais visto.
  • A verdade é esta: e os últimos anos, mas sobretudo os últimos seis meses, foram a cabal e quotidiana prova disto: políticos – a todos os níveis -, partidos, comentadores, juízes, procuradores, etc., todos eles contribuíram para fazer de Portugal um país desvitalizado e sem estratégia e uma democracia degradada e sem ideais, onde vale tudo e nada tem valor.
  • A verdade é esta: temos um Governo novo, com baixas expectativas. Temos uma maioria em minoria. Temos minorias a fazerem maiorias pontuais. Temos um Parlamento em “kidulting” (*). Temos uma conversa de “mercearia” a dominar o espaço público, com governo e oposições a falarem obsessivamente, e só, de um miraculoso “excedente”, como se a sobrevivência deles – mais do que a situação do país – dependesse de uns trocos orçamentais. O Estado-providência transformou-se num Estado-guichet: a fila vai crescendo, e ninguém esclarece que o “excedente” não é para ela, que ele só pode ser utilizado para abater na dívida, em mais nada.
  • – A verdade é esta: vamos chegar ao 25 de Abril de 2024 sem qualquer estratégia para o futuro do país, seja de que partido for e seja qual for a área que se considere: da educação à segurança, da agricultura à ciência, da cultura à economia, da energia às novas tecnologias, da Europa à lusofonia ou à globalização. A política tornou-se “comentário” político, seguindo o inédito modelo presidencial. A leitura dos programas eleitorais dos partidos, além de uma generalizada iliteracia, revela um sideral vazio de ideias. Aqui não há excedente, é tudo défice, um colossal défice.
  • A verdade é esta: vivemos nuns casos de remendos pontuais, noutros por arrasto alheio, leia-se europeu. E é tudo, quanto ao mais só se discute a disputa de cargos a ocupar e as fantasias do “excedente” a gastar. As forças políticas que dominam o país desde 1974 instalaram-se num conformismo que as senilizou, foram elas que na verdade inventaram e alimentaram a obsessão de um extremismo “de opereta” em que a encenação do grotesco e a gritaria substituíram a proposta de ideias e o seu debate, mas que cresceu a ponto de já poder ameaçar os seus criadores…
  • A verdade é esta. E porquê? Porque assim, inventando um inimigo, o que se procura é disfarçar a completa falta de ideias e a morte das ideologias (da social-democracia à democracia cristã, passando pelo liberalismo clássico, tudo “cadáveres que procriam”, como diria Pessoa) que sustentavam o status quo, entregando-se à ilusão neoliberal e ao seu extremismo de centro. Sim, sim, porque este extremismo também existe, ele revela-se mesmo cada vez mais forte e invisível, é lá que está o bloqueio a qualquer dinâmica regeneradora e revitalizadora de Portugal, da Europa – e da política.
  • – A verdade, a meu ver, é esta – 50 anos depois do 25 de Abril de 1974.

– – – –  – –

(*) – “kidulting” é um termo muito em voga, composto pelas palavras kid+adulte, ele define uma tendência em expansão, em que os adultos se dedicam a actividades em geral reservadas a crianças. Existem já clubes de “kidulting” nos Estados-Unidos, na Alemanha, em Espanha, em Itália e noutros países. E acaba mesmo de ser publicado o The Kidult Handbook, que talvez seja útil aos novos parlamentares…   e não só.

ENTREVISTA de MMC

Entrevista MMC

 (Clique em cima, para ler o original na revista)

“VIVEMOS NO PARADIGMA DO ILIMITADO…MAS TUDO NESTE MUNDO TEM LIMITES!”              

                                  (Entrevista e fotos de Sara Vieira, Anim’Arte, Dezembro 2023)

Para Manuel Maria Carrilho, ministro da Cultura dos XIII e XIV Governos Constitucionais – entre 1995 e 2000 – e “filósofo da contingência”, o que mais interessa é a problematização da contemporaneidade.

Manuel Maria Carrilho pode bem ser, provavelmente, o ministro da Cultura mais carismático e marcante que Portugal já teve, até porque foi com ele que, em 1995, a Cultura ganhou um ministério. Antes disso, já tinha sido um dos principais fundadores do curso de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa, onde era professor catedrático. A ele se deve a criação de diversos Institutos e Direcções-Gerais na área da Cultura, bem como o maior apoio mecenato da história cultural do nosso país, o da Tabaqueira/Philip Morris, em 1999, para a recuperação e construção de cerca de vinte cineteatros em todo o país. Considerando-se suspeito para fazer o balanço do seu próprio trabalho, afirma, no entanto, estar tranquilo com a avaliação que em geral se faz do período em que teve as responsabilidades do ministério da Cultura. Segundo de sete filhos do conhecido Eng.º Manuel Engrácia Carrilho, uma das figuras mais proeminentes da política de Viseu na segunda metade do século XX, do qual talvez tenha herdado o gosto por “fazer coisas”, já que o seu lado mais introspectivo é possível que o tenha herdado da mãe.

Assume que a problematização da contemporaneidade é o que mais lhe interessa. Não cultiva passadismos, mas considera importante conhecer-se bem o passado para se poder ter os olhos postos no futuro. Na sua vida, e na do mundo, valoriza mais o papel da contingência do que o da necessidade, considerando que as coisas vão acontecendo como podiam não ter acontecido, ou ter acontecido de outro modo. A sua permanência de 15 anos na política é um bom exemplo disso, já que foi algo que nunca esperou, quando aceitou integrar o governo de António Guterres fê-lo a pensar estar apenas dois ou três anos na política. A sua identidade profunda é a de professor e filósofo, por isso procura desde 2011 – altura em que, ao terminar as suas funções como embaixador de Portugal na UNESCO, cessou toda a sua actividade política – recuperar o tempo que roubou a essas atividades, trabalhando em diversos projetos e livros.

A ANIM’ARTE, entre cafés e olhares pela janela com vista para um tempo ventoso, foi conversando com o seu interlocutor sobre como os conceitos são as personagens da filosofia, entre outras reflexões filosóficas e políticos e algumas memórias da infância e de adolescência em Viseu. Numa conversa fluida e no ritmo acelerado que lhe é característico, Manuel Maria Carrilho explicou-nos como os filósofos não são, como às vezes se diz, uma “série de maluquinhos”; como a década de 60 viu acontecer mais mudanças do que as ocorridas nos seis ou sete séculos anteriores; ou como Aristóteles, se vivesse na época atual, talvez não escrevesse a obra que escreveu, porque teria muito menos tempo para pensar, vivendo numa sociedade acelerada que se rege pelo paradigma do ilimitado, uma ideia muito própria de Manuel Maria Carrilho, que tem por base a constatação de como as sociedades dos nossos tempos vivem como se tudo fosse infinito, da dívida até a própria vida, num consumismo frenético, em que o conhecimento pouco importa, a saúde surge como um dos poucos triunfadores, a morte se esconde e a atenção de um adolescente não dura, em média, mais do que nove segundos. Fenómenos que surgiram com a geração mais rica e egoísta de toda a História, e que são preocupantes porque, na verdade, quer as pessoas queiram ou não, tudo é finito no nosso mundo. A sociedade que vive o paradigma do ilimitado é a mesma que privilegia o infotretenimento, em que a notícia de uma vaca a bloquear uma autoestrada pode ter tanta relevância como uma catástrofe natural…. Vivemos tempos difíceis, paradoxais, e em que a política está manietada, à mercê da comunicação, das redes sociais, do presentismo, etc.á que esperar o que está para vir e que seja melhor…

                                                                         * * * * * * * *

ANIM’ARTE (A) – Fale-nos um pouco sobre o seu percurso profissional. Que balanço faz, por exemplo, do tempo em que foi ministro da Cultura em Portugal? Foi um ministro que marcou pela diferença e inovação na época…

Manuel Maria Carrilho (MMC) – Eu sou naturalmente suspeito para o fazer. São as outras pessoas que o devem fazer, eu só lhe posso dizer que, em geral, fico contente com o balanço que se faz do meu trabalho no ministério da Cultura, no governo de António Guterres, tornou-se muito consensual. Às vezes, fico mesmo surpreendido com o que se diz, como quando há uns tempos o jornalista Luís Miguel Queirós, no Público, falava de uma “maldição do Carrilho” para caracterizar a incapacidade – aos olhos dele, claro – dos ministros que se seguiram…e já lá vão cerca de vinte anos!

A – Mas a sua vida não começou na política…

MMC – Não, a minha opção de vida foi desde muito cedo orientada para ser professor. Ainda fiz essa escolha no liceu, quando estava no último ano, no 7º da altura, quando estava para seguir o curso de Direito…. Foi então que fiz uma opção pela Filosofia, o que foi fácil porque só havia uma disciplina diferente. Fui diretamente para a Faculdade de Letras, sem nunca ter entrado na Faculdade de Direito, já tinha decidido ser professor e dedicar-me ao que mais gostava de fazer: aprender, ensinar, pensar. No Liceu, nessa altura, a minha vida política teve muito a ver com o facto de se viver em ditadura, à qual eu me opunha, de resto em circunstâncias um pouco difíceis, sobretudo dadas as funções do meu pai, que era o governador civil de Viseu. Anos mais tarde, uns meses antes do 25 de Abril, estive em Paris a preparar a minha “fuga”, porque eu nunca faria a guerra colonial. Isso depois foi alterado pelos eventos que se seguiram. Pensava ir para Paris, para Uppsala (na Suécia) ou para Londres, hesitava… não sei… Com o 25 de Abril tudo mudou e acabei o curso cá.

A- E acabou professor, como queria?

MMC – Bom, na Faculdade de Letras o caos em que se vivia então era tal que me levou a concorrer ao ensino secundário, ainda estive no preparatório, depois fui colocado no Liceu Camões, a seguir no Liceu Gil Vicente, e foi nessa altura que a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova decidiu criar o curso de Filosofia, a que eu concorri para ensinar “epistemologia”, foi assim que me tornei num dos fundadores desse curso, fiz tudo, com colegas como o António Marques, mais tarde o João Sàágua  – hoje Reitor da UNL – e outros, para se fazer um curso diferente, o que acho que se conseguiu. Eu tinha criado, no âmbito privado, uma revista, a “Filosofia e Epistemologia”, editada pela Regra do Jogo, já tinha algumas relações internacionais, tudo convergiu…e com a minha ida para a Universidade a minha vida deu mesmo uma volta. O desafio agora era a chamada “carreira” universitária – a pós-graduação, o mestrado, o doutoramento, a agregação – e, ao mesmo tempo, ajudar a criar um curso diferente, um curso mais internacional, com convites a muitos filósofos que nunca tinham vindo a Portugal, com uma dinâmica de investigações e de intercâmbios muito diferente da que havia nos outros cursos de filosofia.

A – E a vida política?

MMC – Eu tive sempre atividade política, antes e depois do 25 de Abril, mas a partir de 1974 foi sobretudo como compagnon de routedo PS. Eu só entrei para o PS quando o Mário Soares saiu para a Presidência. De resto, eu costumo dizer que fui sempre mais soarista do que socialista, porque achei que a opção de Mário Soares era aquela que era mais realista, mais viável para Portugal naquela altura. Vivi por isso essa fase um bocado isolado dos meus amigos, porque eram quase todos esquerdistas, mas eu pensava realmente que, num exercício de lucidez democrática, aquela era a via possível depois de uma ditadura tão longa. Embora não fazendo propriamente parte da vida do Partido Socialista, participei muitas vezes em iniciativas para as que me convidavam, reuniões, debates, etc…. Colaborei com o Jorge Sampaio quando ele foi Secretário-Geral, fiz a pedido dele um programa para a Cultura, que depois não teve seguimento por razões que agora não interessa referir. Mas a minha relação com a política foi sempre muito informal, solta, porque eu sou, fundamentalmente, um universitário. Talvez por isso na política tenha sido sempre um pouco diferente do que é habitual, as críticas eram sempre à minha independência, à minha irreverência, e por aí adiante, como sabe, na política há muita obediência, subserviência, não é o meu mundo. E nunca contei estar quinze anos na política, pensei que estaria dois ou três anos, o tempo de lançar o novo ministério da Cultura, são as contingências da vida. A uma coisa segue-se outra: do ministério fui para o Parlamento, do Parlamento fui como embaixador representar Portugal na UNESCO, são coisas que foram acontecendo. Mas, assim que pude, regressei à Universidade e retomei o meu trabalho. A minha identidade profunda é como filósofo e professor de Filosofia, é o que gosto de fazer: ensinar, pensar, estudar, ler, debater…

A – O que faz hoje o Manuel Maria Carrilho?

MMC – Depois desse percurso, bastante mais diversificado do que alguma vez previra, hoje estou reformado da Universidade, onde fui professor catedrático desde 1994. Atualmente, trabalho nos meus livros dou algumas aulas e cursos, quer cá quer em Paris e Bruxelas. Neste momento o que fundamentalmente me ocupa são os meus livros. Perdi muito tempo…

“A política cortou ligações com o conhecimento”

A – O que diz gostar de fazer é aprender, ensinar e debater. A política, supostamente, deveria ter como base o debate…

MMC – Pois devia, mas não tem. Não há debate em nenhum partido, não haja ilusões. Houve um pouco, justamente no período dos Estados Gerais, entre 1994 e 1995, com o António Guterres, porque era necessário criar uma alternativa séria ao poder fortíssimo de Cavaco Silva. Não conheço mais nenhum período em que os partidos tenham discutido o que quer que seja. Em geral, antes das eleições fazem-se umas simulações de debate, que não passam disso, não se debate nada. Penso que boa parte do drama, da descredibilização da política se deve ao facto de ela ter cortado ter cortado, e há muito, as suas ligações com o conhecimento. Com o conhecimento no sentido mais geral, com as universidades, a competência, etc. A política entregou-se completamente nas mãos da comunicação. Hoje, o que conta é a pequena frase, em feral vazia, dita no momento escolhido, e essa é a grande diferença. Se olharmos para o pós-guerra, vemos que os grandes líderes da altura, Eisenhower, De Gaulle, Churchill, eles reuniam entre eles, às vezes demoradamente, estudavam os problemas. Lembre-se que Keynes, que era quem era, fazia parte da equipa britânica nesses debates. Eram pessoas com as mais altas qualificações, franceses, ingleses, americanos, que ajudavam a definir as políticas. Hoje, está tudo na comunicação, na pequena frase, nos jornalistas, infelizmente na maior parte dos casos muito ignorantes… E o que acontece em reuniões europeias (e eu assisti muitas vezes a isso)? A grande preocupação dos líderes é saber, como já lhe disse, qual deve ser a pequena frase que vão dizer à saída para satisfazer os media, muitas vezes sem qualquer conteúdo. Reúnem-se umas escassas duas ou três horas para tratar de temas extraordinariamente difíceis, daí o descrédito que cresce, porque as pessoas não são estúpidas e percebem que há uma encenação permanente da política através da comunicação. Como já tenho dito, a política e a comunicação são, hoje, coprodutores de eventos, são “compères”, mais do que propriamente concorrentes, como querem fazer parecer. E hoje a política tornou-se muito dececionante, porque, realmente, não consegue resolver os problemas das pessoas, os problemas arrastam-se, os últimos 20 anos são em Portugal – e também na Europa – um sucessivo adiar de problemas. Tive sempre dificuldade em lidar com esse arrastar… enquanto estive na política, procurei contrariar isso, fiz o melhor que sabia, tanto na Cultura como no Parlamento – apesar de aí ser onde me senti menos investido – e, mais tarde, na UNESCO. Mas para mim nada na política compensa umas horas de leitura, de escrita, de conversa com os meus verdadeiros amigos (que não são da política, são de outros mundos), é aí que me sinto bem.

A – A filosofia também pode cruzar-se com a política…

MMC – Claro, a filosofia cruzou-se sempre, de facto, com a política, desde sempre, desde Platão e Aristóteles. Quem definiu o essencial dos parâmetros da política, da democracia até ao governo representativo, foram filósofos. A profissionalização da política no século XX é que alterou muito essa ligação que havia entre o pensamento político e o pensamento filosófico. Hoje, a política está quase reduzida a gerir o quotidiano dos Estados das pessoas e pouco mais. As ideologias desapareceram, atualmente não há, propriamente, ideologias, como havia há 30 ou 40 anos, com as quais as pessoas se identificavam. Há uma fragmentação muito grande dos eleitorados. Tudo isso tem a ver com fenómenos extremamente complexos, a globalização, mas não só…

A – Daí a enorme abstenção…

MMC – Sim, há muitas razões para a abstenção, é um fenómeno geral de todas as democracias e tem a ver com o que lhe dizia, com a impotência dos políticos, com a incapacidade deles para resolver os problemas o que, neste momento, é muito agravado pela nossa inserção europeia e pelo modo como ela foi feita, e pela globalização, de que a Europa, ao contrário que que muitas vezes se diz, foi pioneira.

Do Alemão e do Grego ao acordo ortográfico “suicidário”

A – Um pequeno à parte e voltando atrás na conversa… A diferença entre habilitar-se ao curso de Direito e ao de Filosofia residia nas disciplinas de grego e de alemão, sendo que grego era a disciplina que constava no plano curricular do curso de Filosofia, salvo erro. Fala grego?

MMC – Não, como diz, quando fiz na o 7º ano do liceu, que era o último, fiz alemão e até cheguei a dominar mais ou menos essa difícil língua, lembro-me que no Verão desse ano lia jornais alemães… Hoje ainda leio, mas com alguma dificuldade, alguns textos mais técnicos, sobretudo filosóficos…Mas quando entrei no curso de filosofia estudei grego, claro, tinha que ser, durante alguns anos tive lições de grego, lembro-me que eram umas aulas bem cedo, quase sempre às 8.30h da manhã. Mas as línguas “mortas”, como as línguas que não se praticam, são muito difíceis de manter, aconteceu-me como grego o mesmo que aconteceu com o latim ou com o alemão, é o que acontece com qualquer língua que não se pratique regularmente.

A – Tal como a nossa língua portuguesa, agora com o Acordo Ortográfico, que já não é a mesma de Camões…

MMC – Pois é, eu opus-me sempre ao Acordo. De resto, nenhum outro país da CPLP o pôs em prática, o que faz dele para nós, portugueses, algo de suicidário, foi mais uma decisão absurda daquele voluntarismo ignorante e cego de José Sócrates. O Acordo leva a que nós portugueses, que somos – digamos – a matriz da língua portuguesa, nos tornemos minoritários na nossa própria língua, maioritário é o brasileiro, eles são milhões. Tomar uma iniciativa para tornar o português minoritário na sua própria língua e cultura – e no mundo -foi uma coisa quase criminosa, mas foi o que se fez. Infelizmente, é preciso dizê-lo, isso. aconteceu com a cumplicidade da maior parte do media e perante a indiferença quase geral do país.

Do maior mecenato de sempre ao paradigma do ilimitado

A – Qual era a sua visão para a Cultura neste País? O que é que tentou fazer e o que considera que ainda hoje falta fazer, nesse aspecto?

MMC – Na altura, penso sinceramente que o que se fez foi muito. Em primeiro lugar, o Partido Socialista e o António Guterres prometeram, e fizeram, algo decisivo, que foi criar o Ministério da Cultura, que não existia e que, tirando aquele período da troika em que ficou suspenso por uns tempos, nunca mais desapareceu. A minha ideia, a minha missão, foi institui-lo com uma estratégia própria em todos os domínios, com políticas estruturantes e transversais no âmbito da política do governo. Cortar completamente com aquela ideia muito comum da cultura como flor na lapela, boa para levar nas comitivas oficiais alguns artistas, mas que fora disso é votada ao maior desleixo, para ser suave… Ora, a cultura é, antes do mais, a matriz da identidade de um povo em todas as suas dimensões, pelo que o Estado tem obrigação de a apoiar, nomeadamente num país como Portugal, onde o mercado não permite, em muitas áreas, que a Cultura seja autónoma do ponto de vista do seu financiamento. Veja o caso da ópera, que, praticamente todos os países subvencionam, sem isso não existiria…Em Portugal, nós temos o cinema, o teatro, diversas formas de criação que se debatem com um mercado muito pequeno, portanto, se o Estado pensa que deve estimular, apoiar essas atividades (é uma opção política, claro, que se deve ser tomada em eleições) tem a obrigação de ter políticas e meios para o fazer. Por isso é que, na altura, foram criados uma série de Institutos e Direcções-Gerais, que viriam a ser, muito deles, destruídos pelo governo de Durão Barroso e, sobretudo, pelo de José Sócrates: o Instituto de Arqueologia, o Instituto dos Museus, o Instituto do Património, o Instituto de Arte Contemporânea, entre outros. A estruturação das várias dimensões da política cultura foi feita nessa altura, o orçamento praticamente dobrou nesses cinco anos. Criámos um Fundos Europeu para a Cultura, que não existia, andávamos sempre a mendigar os Fundos Europeus do Turismo e de outras áreas, porque na cultura não havia nada específico para a Cultura. Nesse sentido criou-se o POC (Programa Operacional para a Cultura), que garantiu níveis de financiamento nunca antes alcançados. E conseguiram-se apoios mecenáticos extraordinários, como o da Tabaqueira/Philip Morris, que foi o maior mecenato que houve na cultura – cerca de sete milhões e meio de euros – com o qual foi possível fazer cineteatros por todos o país, cerca de vinte.  Esse financiamento foi tão importante que o próprio presidente da Philip Morris Europeia veio a Portugal assinar o protocolo dessa iniciativa. Houve toda uma política de assunção da cultura por parte do Estado, de articulação com os privados e de criação de uma política de mecenato – de que beneficiaram, por exemplo, os Teatros Nacionais, mas não só…Sabe, cai-se muitas vezes no erro de dizer “agora, não se apoia isto ou aquilo, vai procurar-se o apoio do mecenato!”. Ora o mecenato foge quando o Estado se afasta. O mecenato só apoia os organismos do Estado, em primeiro lugar em períodos de boa dinâmica económica, e depois quando o Estado está lá. Nós investimos muito nos equipamentos de criação artística e os mecenas responderam sempre muito positivamente.

A – E quanto ao que falta fazer…

MMC – Não quero julgar o que se seguiu, sinto que não o devo fazer, até porque não sigo, nem sei bem qual é hoje a política cultural, o que sei muito bem é o que faria e o que não faria, mas não quero nem devo falar disso. Seria delicado da minha parte estar a avaliar outros responsáveis, do que se vê, como disse, não vislumbro qualquer política, estratégia ou ambição no domínio cultural em Portugal. Nós tivemos essa ambição, nacional e internacionalmente. Estivemos na Feira de Frankfurt, justamente um ano antes de José Saramago ganhar o Nobel da Literatura, e aproveitámos a ocasião para projetar várias áreas da cultura portuguesa. Estivemos em todas as grandes Feiras de Arte, no Salon du Livre de Paris, na Bienal de Arte de Veneza, na Trienal de Arquitetura, e muito mais…Apesar da política cultural externa ser da tutela do ministério dos Negócios Estrangeiros, tivemos constantes iniciativas internacionais nesses cinco anos.  Quanto ao que se seguiu, cada um avaliará. Essa era a minha visão, partilhado com o primeiro-ministro António Guterres. Claro que acho estranho que tenha sido o mesmo partido que lançou esta política a destruí-la depois, particularmente com José Sócrates e, que continue ainda agora a haver uma grande indiferença em relação ao sector cultural. Hoje, a insensibilidade cultural atravessa todos os partidos, do PC ao Chega passando pelo PS, vive-se numa sociedade cada vez mais a-cultural, em que a cultura está completamente subalternizada pelo entretenimento. O entretenimento está a tornar-se numa dimensão sufocante e uniformizadora de toda a sociedade, através dos media e das redes sociais. Veja que, em rigor já não há informação, o que temos é o que designo como infotretenimento. Hoje, uma vaca que apareça a bloquear uma autoestrada tem quase tanta importância noticiosa como uma catástrofe natural, um conflito entre países, etc. É na verdade o entretenimento que estrutura cada vez mais toda a vida social e democrática, e a maioria das pessoas encara isto passivamente… A cultura, tal como de resto da educação, vai a caminho de um abismo, o “homo economicus” devastou tudo, o que conta é o poder de compra, também a Saúde, é verdade, são estes os grandes triunfadores desta mudança de sociedade que vive no paradigma do ilimitado. As sociedades contemporâneas vivem sob o paradigma do ilimitado, ou seja, acreditam que tudo é possível, que tudo é infinito. A dívida, o consumo, a energia e, até a vida, tudo é infinito. No entanto, nós sabemos bem que, pelo contrário, tudo é finito.

A – É realmente um paradoxo…

MMC – Não é um, são muitos, só assim se compreende o que se passa com o aquecimento global, com as alterações climáticas, com a biodiversidade, etc. Nós sabemos que estamos a caminho de algum abismo, é onde nos conduz a cegueira do ilimitado, mas o paradigma do ilimitado tem uma outra face, outra vertente, que é a do conforto. E hoje as pessoas não estão dispostas a abdicar dele, preferem ignorar o que vai acontecer aos filhos, aos netos e, provavelmente, ainda a eles próprios, que é a devastação, em vários planos, do planeta, porque não querem prescindir daquilo que têm. A geração que nasceu entre os anos 50 e 60 foi a geração mais rica de sempre, que teve melhores condições de vida, mas foi – e é – completamente egoísta. E hoje vive-se nessa ilusão do ilimitado, quando tudo é, insisto, finito. Veja-se o que se passa com a própria vida, com o covid-19 isso foi muito claro, o modo como se pôs a vida à frente de tudo, com os exageros e a desorientação de que já falei no meu livro Sem Retorno. Queremos viver como se fossemos imortais, raramente se pensa que os problemas de saúde são inerentes à humanidade, fala-se cada vez mais deles como se a responsabilidade – a “culpa”! – fosse do Estado… Há nisto uma ligeireza que atordoa completamente. E veja como a morte desapareceu do espaço público… O que é que isso quer dizer? Eu velei muitos mortos em miúdo, em adolescente, mas hoje a morte como que desapareceu, porque as pessoas não suportam a ideia – e a realidade – da morte. A sociedade sofreu mutações gigantes, estramos a entrar noutra outra sociedade, noutro mundo, em rigor é a sociedade que está a desaparecer, só há indivíduos, é mais do que uma alteração de mentalidades, é uma alteração das subjetividades individuais, e o desaparecimento do coletivo. O conectivo substituiu o coletivo, é isso. É talvez a primeira vez na história que há um conjunto de mudanças tão profundas e generalizadas, que incide sobre a subjetividade das pessoas, no modo como se pensa o presente, como pensa a família, como pensa o ensino, como pensa a cultura, como pensa o futuro…ou não pensa, porque o futuro é uma dimensão que deixou de estar presente. O futuro desapareceu, hoje vive-se no presentismo total.

A – Antes, a religião, controlava as pessoas, também o fazia através da criação de expectativas no futuro…

MMC – Sim, mas para lá da dimensão individual de cada um, a religião tinha um papel estruturante na vida das sociedades, nomeadamente das sociedades ocidentais, e não só. Esse papel foi depois em grande parte substituído pela política. Não foi por acaso que as principais ideologias políticas prometiam um mundo novo, um homem novo, um futuro radioso, tudo metamosrfose laicas do “além”. Uma vez esse papel da política esgotado, ele foi tomado pelo consumo, que se tornou na dimensão nuclear na vida das pessoas e das sociedades. Os centros comerciais são vistos como as novas catedrais, as catedrais do consumo. As pessoas têm necessidade de consumir, o que tem a ver com o modo como vivem o tempo, em particular o presente. Porque é que as pessoas têm que comprar um telemóvel todos os seis meses, ou todos os anos, de comprar permanentemente coisas de que não precisam? O consumo alimenta a ilusão do ilimitado, e é alimentado por ela, é tremendo círculo vicioso, claro…

A – Atualmente, as pessoas passam mais tempo a pensar em como adquirir o próximo bem, do que a pensar noutro género de situações…

MMC – Hoje, em geral e em rigor, não se pensa, não se pensa, essa é que é a realidade. vivemos numa atmosfera que eu tenho designado como “impensar”. O que atualmente estrutura o dia-a-dia das pessoas é a capacidade para não pensar, vítimas – não gosto do termo, mas passa – das fábricas de ignorâncias em que se transformaram os media, as famílias, a própria escola. Hoje a escola é, numa boa medida, uma fábrica de ignorância, não de conhecimento. Quando vejo crianças ou adolescentes terem que compreender, por exemplo, as Invasões Napoleónicas ou o papel de Júlio César ou de Napoleão, em meia dúzia de linhas, só podemos dizer que estamos perante uma fábrica de ignorâncias. É isso que tem alterado completamente o mundo, quase já não há transmissão de conhecimento. E isto tem aumentado com a ilusão das novas tecnologias, porque uma coisa é ter informação sobre algo, clicando, outra bem diferente é conhecer, compreender as causas, as relações, os efeitos, isso requer mais tempo, mais articulações…Atualmente, citam-se nomes, referem-se eventos, mas não se compreendem nem se sabe articular os acontecimentos, é por isso que – entre muitos exemplos – tantos jovens situam a Revolução Francesa no século XIV ou o Renascimento antes da Idade Média, etc. Nos anos oitenta do século passado, a média de atenção de um adolescente era de 12 minutos, atualmente é de 9 segundos, porque entretanto entram mails, mensagens, multiplicam-se os links, etc., etc. A capacidade de concentração está a desaparecer e sem capacidade de concentração não há, de todo, qualquer conhecimento.

Um filho orgulhoso do pai e da mãe

A – O Google diz que é de Viseu, mas que nasceu em Coimbra. Afinal, de onde é o Manuel Maria Carrilho?

 MMC – Sou de uma família de sete irmãos e irmãs, nascemos todos em Coimbra. Isso deu-se pela falta de condições que existia em Viseu na altura, nem sequer havia maternidade… Por isso fomos todos nascer a Coimbra e, como digo às vezes, essa foi a minha maior estadia em Coimbra. Passei lá os primeiros oito dias de vida, depois vivi até aos meus 18 anos, em Viseu, a seguir vim para Lisboa e… para o mundo. Mas, passei toda a infância e adolescência em Viseu. Portanto, sou, sinto-me completamente viseense (risos)!

A – Falar de Viseu sem falar do seu pai, Manuel Engrácia Carrilho, é quase impossível, sendo que foi das figuras mais influentes do distrito no século passado…

MMC – Sim, é um facto, o meu Pai no século passado, e durante cerca de 40 anos, desempenhou muitas funções em Viseu. Ele era do distrito da Guarda, a minha mãe é que era de Viseu. Mas o meu Pai foi estudar para Viseu, a seguir veio para Lisboa tirar o curso de Agronomia, depois regressou a Viseu, onde casou e começou a sua vida profissional. Ao mesmo tempo, ele começou a ter muita atividade social ligado a uma instituição da Igreja, a Ação Católica. Foi daí que, depois, passou – ou o levaram – para a vida política. Em Viseu, o meu Pai foi praticamente, tudo: penso que começou como provedor da Misericórdia de Viseu, onde fez uma obra social notável, depois foi deputado, governador civil e, mais tarde – já depois do 25 de Abril – veio a ser Presidente eleito da Câmara de Viseu. Não foi por acaso que o meu Pai, tendo sido um homem do Antigo Regime, se candidatou, a pedido de muitos viseenses, mas como independente – teve apenas o apoio do CDS, que era residual… -, numa cidade que nessa altura era muito conhecida pela sua fidelidade ao PSD ( era mesmo apelidada de “Cavaquistão”) e ganhou as eleições sozinho, creio que em 1986. Penso que foi o momento de um reconhecimento claro, ele deixou o seu nome ligado a várias iniciativas muito significativas para a modernização de Viseu e, sobretudo, muitos projectos que, felizmente, depois dele foram prosseguidos. Atualmente, Viseu é considerada, foi-o no ano passado pela terceira vez consecutiva, como a cidade com maior qualidade de vida em Portugal. Não se pode dizer que tal se deve ao meu pai, evidentemente, mas também se deve a ele, a uma herança que vem do tempo dele e de dois colaboradores que foram os seus braços direitos – e que eu não posso deixar de referir -, o engenheiro Leopoldo Cunha Matos e o engenheiro Carlos Pimentel, duas pessoas notáveis. O engenheiro Pimentel era doutorado em Urbanismo, em Londres, isto nos anos 50, imagine, algo extremamente raro nessa época. Deu-se sempre muita atenção ao urbanismo em Viseu, o que permite que hoje seja uma cidade de referência no país.

A – Presumo que o seu pai seja um motivo de orgulho…

MMC – Para mim? Claro, tive sempre o maior orgulho no meu Pai, independentemente das nossas divergências políticas, sobretudo a partir dos meus 15 anos, quando passei a ter opções políticas muito claras. O meu pai era um homem do Antigo Regime, mas era também um homem extremamente aberto, com quem se conversava sobre tudo… Às vezes, zangávamo-nos, acontecia…(risos)… Mas eu tive sempre muito orgulho nele. Hoje, 30 anos depois de ele ter desaparecido, até me faz impressão ver como as pessoas em Viseu continuam a falar sobre os projetos dele, das obras e iniciativas que lançou. Mas o facto de ele ser “a” figura pública, não me torna mais orgulhoso dele do que da minha Mãe, que na minha formação foi até, provavelmente, mais importante do que o meu Pai. Tive certamente conversas mais importantes com a minha Mãe, para a pessoa que me tornei do que, provavelmente, outras mais disputadas que tive com o meu Pai…. Conversávamos, às vezes, dias inteiros, já comigo adolescente, talvez já adulto. A minha Mãe era uma pessoa de casa – como se dizia – educada numa família tradicional, com uma excelente formação. Digo isto porque avaliar as pessoas só pelo que é público é, na verdade, muito enganador…

Os melhores professores foram de Viseu

A – Gostou de viver essa primeira parte da vida em Viseu?

MMC – Sim, gostei, e fiquei sentimentalmente ligado a muitas pessoas, a muitas coisas da cidade, onde tenho muitos amigos. Quando comparava, com amigos meus, já aqui em Lisboa, quando vim para cá estudar, o período de liceu, descobria sempre que no Liceu Alves Martins, de Viseu, eu tinha tido os melhores professores que se podia ter: o Dr. Augusto Saraiva, que foi meu professor de filosofia, o Dr. Osório Mateus, que foi meu professor de português e de francês, o meu professor de ciências naturais, a minha professora de matemática, foram todos – entre outros, naturalmente  – professores fantásticos … Realmente, eu tive muita sorte em ter tido esses professores de uma qualidade extrema, a minha vocação talvez tenha começado aí, não sei bem,  também tive colegas fora-de-série, o José Sobral, o Carlos Pessoa, o Alfredo Franco Alexandre, penso muitas vezes que havia qualquer coisa em Viseu que nos estimulava, no plano  intelectual e não só.

A – Como foi a infância em Viseu?

MMC – A infância, nessa altura era algo muito reservado, era o que “familiar” queria dizer. Não tem nada a ver com os dias de hoje. Nós éramos sete irmãos, era portanto uma casa com muita gente, com muitos amigos, sempre com muita agitação…Mas tínhamos uma vida muito simples em tudo, não havia as distrações, nem o consumismo que há agora. Nós vivíamos uma vida muito intensa de relações, de amizades, de criatividade, de invenções… nenhum de nós pensava em ir às compras ou ao centro comercial, que sequer nem havia. Todas as famílias, mais ricas ou menos ricas, mais ou menos remediadas, viviam de uma maneira frugal, mas muito mais autêntica e com muito mais tempo do que hoje. Tínhamos mais tempo para conversar, para ler, não era como agora, agora as pessoas são desafiadas por mil e um estímulos, desafios, das redes sociais, das televisões, etc., Pergunto-me muitas vezes se eu não tivesse crescido nessa época, o que teria feito? Às vezes vejo certos livros meus – que têm a data, porque antes eu punha a data nos livros que comprava -, livros que li aos 17, 18 anos, de filósofos, de escritores… e pergunto-me: será o que hoje os leria? Sabe, eu ia muito a Coimbra – de camioneta ou à boleia – comprar livros, porque a livraria que havia em Viseu era pequena, e tudo o que eram livros em francês ou inglês tinha que os ir comprar a Coimbra, onde havia boas livrarias. Se fosse hoje, onde é que eu teria tempo para ler aquilo tudo, com as solicitações que existem? O nosso quotidiano era o das nossas amizades, das nossas conversas, que eram muito ligadas a um certo aperfeiçoamento, não só individual, como coletivo e de grupo. Os desafios a que nos propúnhamos eram muito, muito diferentes.

A – De que forma pensa que Viseu possa ter interferido para o seu chamamento para a filosofia e para a política?

MMC – Não gosto da palavra – nem da ideia – de “chamamento”, é muito mística e eu não sou nada…prefiro vocação, foi mais disso que se tratou, tanto na filosofia como na política. Em relação à política, creio que começou em casa, onde sempre senti que havia…muita política. Na altura a vida familiar não estava centrada, como hoje está, nas crianças, nesses novos “reizinhos”, não, lá em casa falava-se do mundo, discutiam-se várias coisas, éramos pessoas muito viradas para fora. Acho que a política começou aí, e também com os amigos, no liceu, quando comecei a ter ideias e iniciativas próprias, chegámos a fazer um jornal, o “Geração de 60”, que foi censurado e fechado. Na filosofia, penso que a vocação começou talvez com um professor de filosofia de que já lhe falei, um professor notável, que era o autor dos principais manuais de filosofia utilizados em quase todo o país, o Dr. Augusto Saraiva No entanto, houve outras influências. A certa altura eu estive no colégio dos Beneditinos de Lamego e o professor de filosofia, que era um frade chamado Jorge Ferreira, também teve alguma influência… mas o que é a vocação? Não sei bem, é-se sensível a certos temas, livros, conversas, ideias, uma vocação é, de certo modo, uma aprendizagem. Como disse Gilles Deleuze, é a sensibilidade a certos sinais, signos, impressões…e uma pessoa vai por ali. Eu senti que aquilo de  que gostava era de ler eram livros de ideias, que o que gostava de discutir eram livros de filosofia, de psicanálise e de política…tudo sempre muito cruzado com capacidade de argumentar…

 

  1. Argumentar para “ter razão”?

Não, argumentar é um modo aberto de pensar, de se colocar no lugar do outro, é fundamental para, por exemplo, pensar o futuro, que foi sempre foi algo que me interessou: ser capaz de olhar para a atualidade e conseguir vislumbrar o que lá vem… Ou seja, ver nos sinais do nosso tempo elementos que conseguimos relacionar com o futuro… A mim interessou-me sempre compreender a contemporaneidade, o interesse do estudo da filosofia não é para saber o que disse este ou aquele filósofo, de um modo, digamos, simplesmente histórico, quando isso acontece surge aquela ideia que os filósofos foram uma espécie de “maluquinhos” que inventaram umas teorias esquisitas, não, os filósofos foram sempre pessoas que procuraram pensar os problemas do seu tempo, e foi para isso que inventaram ideias novas, conceitos inéditos… Os conceitos são os personagens da filosofia, as personagens da literatura têm um correspondente na filosofia, que são os conceitos, que os filósofos inventam para pensar o mundo do seu tempo. O que o Kant queria pensar era a física de Newton, por um lado, a Revolução Francesa, por outro, entre muitas outras coisas. Ele era conhecido por ter um ritual de passeio diário em Konigsberg, e no único dia em que não o fez foi no dia em que chegou a notícia da Revolução Francesa, e sobre a Revolução Francesa o que ele pensou foi: “isto é um sinal de quê? O que é que lás vem?”. Todos os filósofos que contam procuraram pensar o seu tempo. Foi por isso que, quando trabalhei na reforma do ensino secundário da filosofia, defendi que ele estivesse ligado à contemporaneidade, aos problemas de hoje, ajudando os alunos a pensar “o que é hoje a virtude ou vício? O que são hoje a liberdade, a justiça ou a igualdade, etc.?  E se lermos, por exemplo, Aristóteles para pensarmos o que são a justiça, a igualdade, a democracia, etc., percebe-se melhor o lhe disse. Se ainda hoje lê Aristóteles ou Kant, Spinoza ou Marx, é porque foram pessoas que escreveram obras incontornáveis, que continuamos a ter como referência. E note que todos eles tinham muito mais tempo para pensar do que temos hoje, será que, por exemplo, se Aristóteles vivesse nos nossos dias, ele escreveria aquela obra monumental que escreveu? Duvido muito… aquilo em que insisto, é na obrigação dos professores de filosofia articularem os problemas da contemporaneidade com o seu legado histórico. Mas existe muito a tentação de estudar filosofia como se tratasse de uma sucessão de criaturas particulares, que inventaram umas ideias estranhas que não interessam a ninguém, nem servem para nada. A compreensão da filosofia é a compreensão do modo como cada filósofo procurou pensar do seu tempo. O que Platão ou Locke, Hegel ou Bergson procuraram pensar? Todos eles pensaram o seu tempo, nenhum inventou nada gratuitamente, os conceitos que inventaram traduzem uma tentativa de pensar o mundo, e nós somos os herdeiros de muitos desses conceitos e das suas ideias.

“A minha melhor memória de Viseu é a família”

A – Assim de repente, sem pensar muito, quais as suas melhor e pior memórias de Viseu?

MMC – Não sou capaz… sobretudos não cultivo muito a memórias. Bem, mas a minha melhor memória de Viseu é, sem dúvida, a da família. Nem é a “casa” nem o “lar”, é a da família: os meus pais, os meus irmãos, os meus avós,  a casa, a quinta… e no liceu, dos amigos, da cidade, também tenho boas memórias, às vezes mesmo muito boas, e de muitas coisas. Viseu representa um período da minha vida que foi, em vários sentidos, um bocado mágico, umas coisas permanecem, outras desapareceram umas por opções pessoais, outras porque o tempo não pára … Para mim, até aos meus 18 anos, Viseu foi uma cidade inspiradora, a sua memória transporta-me para uma época em que fui muito feliz, foi um período que “me fez”, no sentido em que, como se costuma dizer, uma pessoa aos 18 anos está “feita”, o essencial da sua personalidade está definido.

A – A infância e adolescência, para quem as viveu tranquilamente e sem traumas, costuma ser uma fase de vida que se guarda com saudade…

MMC – Creio que hoje será mais difícil ter esse tipo de memórias. Mais de metade das famílias são famílias “desconjuntadas”, separadas, com mães solteiras, com pais solteiros… a família tradicional desapareceu. Daí, talvez alguma nostalgia dessas formas que havia. E a quantidade de irmãos? Na altura, existiam muitas famílias com 7, 8 irmãos, era muito comum… Penso que é tudo isso que transforma aquele período da minha vida num período muito mágico. É o período dos anos 50 e 60, são sem dúvida as décadas, sobretudo a de 60 em que o mundo mais mudou desde que existe. Nesse período tudo mudou; as famílias, os hábitos, as mentalidades, a sexualidade, o ensino, o amor, as expectativas, a música, tudo. Nos anos 60 houve mais mudanças do que nos seis ou sete séculos anteriores. Penso que ter vivido essa época é um privilégio, absolutamente, incrível. O meu filho mais novo, que vai fazer 20 anos, pergunta muitas vezes coisas desse tempo e diz-me que “realmente, deve ter sido fantástico viver essa época, porque hoje não acontece nada”. Na verdade, o que é que aconteceu desde a invenção do telemóvel? Talvez pouca coisa…mas está toda a gente contente com isso, não é? A Inteligência Artificial? mas isso já vem de tão longe…São vidas que, quando “ligam” o telemóvel, se “desligam” de tudo o mais. As pessoas queixam-se muito da falta de educação das crianças, dos adolescentes, que são malcriadas, etc., mas isso acontece porquê? Porque creem que têm o mundo, todo o mundo, no seu computador. Portanto, tudo aquilo que antes se aprendia, como a cortesia, levantar-se, cumprimentar, etc., para elas não existe, porque o mundo está ali, naquele computador. É por isso que, depois, as escolas já não são realmente escolas. Até muito recentemente, há duas ou três décadas, as famílias eram o lugar da educação e a escola era o espaço da instrução. As crianças chegavam à escola educadas, para aprenderem. Hoje chegam deseducadas, e para se entreterem… e depois pede-se à escola que resolva todas as crises da sociedade: a crise da autoridade, a crise da família, as desigualdades, atira-se tudo para cima da escola e os professores ficam esgotados e bloqueados, sem saberem como podem ensinar quando os alunos não são sequer capazes de estar sentados. Kant escreveu – é uma observação bem pertinente – que uma das principais funções da escola era conseguir que as crianças estejam sentadas e concentradas durante um certo tempo, aí uma hora. E tinha razão! Sem concentração não há aprendizagem. É por isso que penso, e já escrevi, que os professores são os verdadeiros heróis do nosso tempo.

A – Considera-se, portanto, um “filósofo da contigência”. Pode explicar melhor essa ideia ou visão?

MMC – É simples, penso que o que aconteceu, podia não ter acontecido ou ter acontecido de forma diferente. Que aquilo que não aconteceu podia ter acontecido. Que não há uma necessidade intrínseca nos acontecimentos, quando há é de segunda ordem, que o fundamental é a contingência. A minha vida, como a de todos nós, está cheia de contingências, de coisas que aconteceram como podiam não ter acontecido, tanto no plano pessoal como profissional. Há uma tendência para pensar que tudo acontece porque tem uma causa. Na maioria dos casos, não é assim, há razões, motivos, circunstâncias, contextos, não há uma necessidade lógica e causal. A meu ver, isso não existe, é uma ilusão metafísica. Na política, quem primeiro e melhor percebeu isso, foi Maquiavel, com o seu tema da “fortuna”.

A – Atualmente, que relação mantém com Viseu?

MMC – Creio já respondido, tanto quanto sou capaz, a essa pergunta, é uma relação positiva, muito sentimental, ou melhor, afectiva, mas não nostálgica, não sou nada dado a isso.

A – E tem algum hábito especial, como se fosse uma espécie de ritual, que goste de satisfazer sempre que lá vai? Por exemplo, passear por determinado local, visitar outro, ver as tílias, etc. (risos)…

MMC – Não, não tenho rituais especiais, visito os meus lugares da vida… e da morte, naturalmente. É verdade que Viseu está cheia de tílias (risos)! E cheia de verde, tem um parque da cidade que é lindíssimo, enorme, o Rossio está todo cheio de tílias, é de facto uma cidade repleta de árvores…

“Eu gosto muito de admirar pessoas”

A – Como vê a Filosofia em Portugal, atualmente?

MMC – Não se pode “ver” a filosofia… Existem os cursos que existem, os livros, etc…mas situação de toda a cultura é hoje difícil, creio mesmo que corre riscos de desaparecimento na sociedade atual, sobrevive em nichos… Tudo o que é pensamento livre, crítico, está hoje em dia muito cercado pelo consumismo, pelo conformismo, pelo politicamente correto, que agora é o wokismo, a cancel culture, etc..É um enorme problema, uma verdadeira nova  peste que se espalha a um ritmo preocupante. Quanto à filosofia, especificamente, há os departamentos de filosofia com as investigações que lá fazem, mas eu não tenho acompanhado. Estou muito concentrado no meu trabalho, nos meus livros, tenho os meus interlocutores privilegiados, tanto cá como lá fora, há muitos anos.

A – Tem filósofos preferidos, estrangeiros e portugueses?

MMC – Não tenho, nunca tive… Tenho uma concepção da filosofia como uma atividade fundamentalmente problematizadora e, por isso, sempre me autonomizei muito dessa visão historicizante da filosofia que leva algumas pessoas a terem o seu filósofo preferido, acontece até, quando estão a fazer algum trabalho ou tese sobre um filósofo, dizerem: “o meu Platão”, “o meu Spinoza”, etc. São opções, estas traduzem uma relação quase, digamos, “amorosa” com os “seus” filósofos…nunca foi o meu caso.

A – A maioria gosta de Nietzche… (risos)

MMC – E gostam bem (risos), eu também…! Mas eu defino, tematizo os meus problemas, como lhe disse, encarando a filosofia como uma atividade de problematização do mundo, da realidade, e é em função desses problemas que mobilizo, reativo este ou aquele filósofo, esta ou aquela ideia ou obra…foi o que aconteceu com Gilles Deleuze ou Karl Popper, com Michel Meyer ou Richard Rorty. O que não significa que os siga em tudo, longe disso, tive com todos eles diversas divergências, umas mais importantes do que outras, quando refiro os filósofos de que falei, é porque foram os que mais me fizeram pensar, concordando ou discordando com eles.

A – O Agostinho da Silva (risos)?

MMC – Não, nunca o considerei um filósofo, não… O Agostinho da Silva não tem nada de filósofo, não tem filosofia nenhuma, não tem conceitos próprios, mas foi uma personagem curiosa e original. Escrevi há já muitos anos um artigo, que publiquei na Revista do Expresso, que se intitulava “O profeta e a sua tribo”. Está lá o que pensava e penso sobre o assunto. Houve no entanto um filósofo que devo referir, ele ensinava em França, era extremamente original, mas claro que cá em Portugal ele suscitava muitas invejas e resistências – foi o Fernando Gil, que eu ajudei a vir para Portugal, para a Universidade Nova. Entre finais do século XX e o começo do século XXI, foi o único filósofo português com quem trabalhei, e que posso dizer que admirei. Eu gosto muito de admirar pessoas, a admiração para mim é um sentimento decisivo, não só em termos pessoais como intelectuais. Ele era uma pessoa verdadeiramente superior, trabalhámos muito tempo juntos, fizemos imensas coisas, cá e em Paris, infelizmente depois também nos zangámos, mas foi a única personalidade portuguesa, no âmbito da filosofia, que posso dizer que verdadeiramente me influenciou. Depois, há pessoas que contaram muito, como o Eduardo Prado Coelho, mas que não foi um filósofo, foi um brilhante ensaísta e um talentoso professor, de quem fui amicíssimo, tínhamos uma profunda cumplicidade intelectual, ele era uma pessoa sobretudo da literatura, mas também muito aberto a tudo o que era contemporâneo, nas artes, no pensamento, na criação em geral. Fora de Portugal tenho muitos amigos, são amizades em que se cruza o pensamento com a amizade. Por exemplo, o caso de Michel Meyer, um notável filósofo belga e professor na Universidade Livre de Bruxelas, que conheci a partir de uma convergência de interesses sobre a ideia de filosofia. Quando estava a escrever a minha tese (em particular a parte sobre a filosofia como resposta a problemas), descobri que havia um filósofo que desenvolvia ideias semelhantes, no âmbito da que ele chamava a “problematologia”, escrevi-lhe, encontramo-nos, conversámos muito e tornámo-nos muito amigos, passámos férias juntos, veio várias vezes a Portugal. Às vezes, são cumplicidades que começam por ser filosóficas e se tornam pessoais, outras vezes o contrário… Mas no domínio da filosofia os meus melhores amigos não são, com uma única excepção, portugueses.

Para o futuro, livros

A – O que pensa fazer no futuro? Que projetos tem?

MMC – Tenho sempre vários projectos, demais, esse é um problema que se agrava com a idade… Neste momento tento recuperar o tempo “perdido” – é uma metáfora, mas com a sua verdade – na política. Eu fui para o governo 15 dias antes de começar, como estava previsto, a ensinar em Bruxelas, eu tinha sido eleito para dar as lições da Cátedra Chaim Perelman em 1995/96, que era uma das mais prestigiadas da Universidade Livre de Bruxelas, e a minha opção de ficar no governo de António Guterres levou-me a suspender tudo isso. Depois, em 2000, quando decidi sair do governo, pensei voltar a Berkeley, nos EUA, no semestre seguinte, em Setembro, já tinha tudo preparado, mas depois as contingências da vida levaram-me a ficar em Portugal. Estou bem arrependido, creia… De qualquer modo, tenho a noção que a política teve coisas muito boas, foi uma experiência rica e única. Sempre gostei muito de uma frase do filósofo Bergson, que foi um original filósofo francês do início do século passado, que dizia que se deve “pensar como homem de ação e agir como  homem de pensamento” – e esse foi sempre o meu lema, a acreditar que tenha herdado essas duas componentes: a de gostar de fazer coisas, de – como se diz – “meter a mão na massa”, o que talvez seja uma herança do meu pai; e a outra, que é certamente herança da minha mãe, que é mais reflexiva, de pensar muito nas coisas… E lá voltamos a Viseu!En