A POLÍTICA EM DERIVA TERAPÊUTICA

– Parece estranho, mas é cada vez mais comum: refiro-me ao modo de se falar da política como se de uma terapêutica se tratasse, a sugerir uma última metamorfose dos desacreditados vanguardismos de outros tempos. Há dias, no jornal Público, Augusto Santos Silva ilustrou exemplarmente esta tendência, num artigo intitulado “Remédios contra o avanço da extrema-direita na Europa” (05.02.2023). É um texto que merece atenção e análise, ele ilustra bem essa deriva politico-terapêutica, sobretudo porque ela – entre muitas outras coisas, que agora não vêm ao caso – leva a considerar, nas palavras do próprio A.S.S., as estratégias como “remédios” e os adversários como “doentes perigosos”. Assim mesmo.

– É uma deriva no grau zero do pensamento, bem exposto na frase de abertura do artigo, onde se diz que, “para um democrata, o avanço da extrema-direita será comparável a uma doença que progride, enfraquece e pode ser fatal para o regime político característico dos países da União europeia: a democracia liberal e de forte cunho social.” Depois seguem-se as banalidades do costume que já lemos e ouvimos milhares de vezes, num “lençol” de duas páginas de jornal onde não se apresenta uma única ideia nova sobre nada, numa litania de estereótipos que esta “soi-disant” social-democracia – que trocou o social pelo “societal” e se converteu sem resistência ao extremismo centrista europeu – há anos repete “ad nauseam”.

– Mas este grau zero do pensamento político tem um fito: e esse fito é, no caso de A.S.S., ocultar algo essencial, que é o da extrema cumplicidade factual com o partido CHEGA, cumplicidade que ele próprio há vários anos cultiva na forma de um cuidadosamente encenado conflito retórico – começou a fazê-lo ainda no Governo anterior, não perde uma ocasião para continuar a fazê-lo agora que lidera o Parlamento. O que é pois preciso compreender, é que foi o PS que, deste modo, na verdade “inventou” o Chega, para assim – dividindo o seu eleitorado – bloquear qualquer ameaça efectiva do PSD, missão que o CHEGA tem cumprido sem brilho, mas com inegável eficácia. O que nem sequer é original, François Mitterrand fez o mesmo (até mais…) com Jean-Marie Le Pen e a Frente Nacional, para se manter no poder mais alguns anos – o que conseguiu, é certo, com os resultados que depois se viu!

– Claro que para este lance funcionar é preciso diabolizar incessantemente o CHEGA, o que, com a ora atávica ora pueril cumplicidade da generalidade dos media, jornalistas ou comentadores, não tem sido difícil, visando assim impedir qualquer tipo de aproximação CHEGA/PSD, como se de um verdadeiro crime de lesa-democracia se tratasse. E, ao que parece, são muitos os que vão no jogo, a maior parte de um modo completamente descerebrado, alguns mais complacentes dizendo esperar que o CHEGA de des-radicalize…ou seja, se suicide, porque a chave do seu sucesso está justamente, nestes “tempos de cólera”, no seu radicalismo. Basta olhar para a Itália dos últimos meses para se perceber a inanidade desta conversa, e perceber o óbvio: é que o CHEGA só se des-radicalizará quando – e se – chegar ao poder.

– Perceba-se o elementar: este CHEGA, radical e diabolizado, é o mais sólido seguro do PS desorientado e desvitalizado que hoje temos, se manter no poder. E esta aliança está para durar, nunca a INICIATIVA LIBERAL a atrapalhará, refém como está do arrastado fim de ciclo liberal que o mundo vive hoje, com todos – inclusiva na própria I.L. – de mão estendida na fila dessa nova forma de Estado-Providência que é o Estado-Guichet.

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