- . Estamos a chegar, é já na próxima 5ª feira, ao cinquentenário do 25 de Abril de 1974. O contexto é inesperadamente implosivo-regressivo de muitas das chamadas conquistas de Abril – na educação, na saúde, na justiça, no pluralismo de ideias no espaço público, etc.-, e as comemorações anunciam-se, como era de prever, uma mera banalidade de calendário.
- . É pena, porque o contexto actual de “direitização” do país e do mundo tem um horizonte que traz lá muito mais do que parece – valia a pena pensar nisso, mas o garrote da ignorância, do “comentariado” e do conformismo nacionais bloqueia qualquer perspectiva ou antecipação capazes de sondarem o que lá vem.
- . Na verdade, vivemos no País Rato, como Jorge Roque sugere no título do seu último livro. Livro que, a meu ver, é o mais incisivo, profundo e lúcido livro que, num singular “modo literário”, se escreveu em 2023 em Portugal e sobre Portugal (edição Maldoror, 56 pp.). Deixo aqui dois extratos, é a minha contribuição para um outro olhar sobre o cinquentenário do 25 de Abril.
- Ora leiam – e depois leiam mais.
- 1º Extracto:
- – “O vinte e cinco agora é a vinte e seis. Usamos cravos na lapela, quem não a tem, como eu, no bolso da camisa ou no decote, nos últimos anos vi autocolantes com cravos impressos, uma solução sem dúvida prática, mas porque usamos cravos afinal? Combinávamos um jantar todos os vinte e quatro, vermelho tinto tal qual os cravos, sorriso largo tal qual a vida, esperança que brilhava e então não era falsa como depois seria. Líamos poemas em voz alta, fazíamos desenhos colectivos com vinho, cinza e café, beatas como pincel, colheres para os traços mais finos, e não havia erro, não havia falha, o que viesse ia bem com aquela alegria. Parecia tudo mais belo, até aquilo em que talvez já não acreditássemos. Parecia tudo diferente, até aquilo que sabíamos que jamais mudaria. Ao aproximar da meia-noite, as músicas do costume nos velhos vinilos, os brindes, as palavras de ordem, talvez a um canto um rosto mais fechado, um olhar soturno cercado pela mágoa, mas passava despercebido e, quem sabe, pouco depois iluminava-se. Sempre fui velho, em cada momento da vida fui velho, mas nesse tempo era jovem sem que o soubesse, feliz sem que o perguntasse. Depois foi sendo sempre mais triste, mais pobre, e nós a entristecer sem perceber, ano após ano mudados no espelho em que parecia que nunca mudávamos. O vinte e cinco agora é a vinte e seis.”
- 2º Extracto:
- – “Bem-vindo ao país da morte em vida. Aqui é sempre uma maravilha, bom tempo, praias, diversão e simpatia, a típica brandura meridional temperada com esperteza e vigarice, uma conjugação inesperada, refinada por séculos de adestramento, reside aqui o problema, porque quando dás por isso já não há por onde escapar, ai como é bom viver nesta adorável terrinha, do taxista ao ministro todos os impostores são amigos. Bem-vindo ao país da morte em vida. Aqui tudo se repete, nada se transforma, simula-se, usurpa-se, trafica-se, metem-se cunhas despudoradas para galgar desníveis, praticam-se, como se diz, alavancagens, embora ninguém saiba da alavanca e, para o caso, do alavancado, perfeito idiota que nem supõe que o é, profeta patético elevado a ídolo de carnavais, rodeado de maminhas ao léu e figurantes contratados.” (…) Bem-vindo ao país da morte em vida. Aqui não há critério, não há exigência, não há escrutínio, a realidade é feita de uma matéria mais fluida, uma geleia, uma compota, bem docinha, por sinal, não há como resistir-lhe, a dieta é para amanhã, para o ano, logo se verá, e viola no saco, prezado indignado, neste arranjo de tias e comadres não há debate, não há confronto, não se agitam as águas, heróis do mar, heróis do mar, mas recolhidos à costa, pois o perigo espreita, fantasiar a viagem que não se fará é sem dúvida mais seguro, ó ovo de Colombo ingénito no cu da galinha, ó suprema descoberta irrealizada, como é que ninguém se havia lembrado, tínhamos de ser nós, nação predestinada, todo um novo mundo por revelar à mercê da nossa imaginação indomável.”