OS EUROBEATOS E A IMPOTÊNCIA POLÍTICA

 

  • O assunto já devia fazer sorrir, de tal modo é fruste e evidente o estratagema. Mas o facto de isso não acontecer e de, pelo contrário, se ter tornado em matéria pretensamente séria, diria mesmo “de Estado”, mostra como o espaço público português – nisto como em quase tudo, completamente mimético em relação ao que se passa pela Europa – se encontra completamente tóxico-anestesiado.
  • Refiro-me ao papão da “extrema-direita”, ressuscitado pela mão, ou melhor, pela boca, de muita esquerda nos últimos 10/20 anos, num mimetismo histórico tirado quase a papel químico com o que se passou nos anos 70/80 com a “extrema-esquerda”. Curiosamente, no mesmo período em que a esquerda – fosse ela radical, social ou liberal – não conseguiu formular uma só ideia nova, minimamente alternativa às múltiplas metamorfoses financistas do capitalismo. Bem pelo contrário – com a excepção cada vez mais domesticada, e meramente vocal, da esquerda radical – todas se converteram a essas metamorfoses em nome de um tão conveniente como misterioso “sentido da história”, que ajudou poderosamente a acabar com todas as já definhadas ideologias “clássicas”, transformadas agora em meras etiquetas do chamado jogo democrático.
  • Jogo este que, note-se, hoje em dia escapa cada vez mais à vontade dos povos, reduzido que foi às suas constantes encenações mediáticas, como se de um entretenimento de marionetas se tratasse, comandadas atrás do palco por hábeis mãos e eficazes ventríloquos. E com o fim das ideologias, a diabolização – essa tão enraizada tradição cristã e ocidental – tomou o lugar da argumentação e do debate, agora é satã que está por todo o lado, numa essencialidade de tal modo intensa que basta pronunciar certas palavras para, conforme os casos, inquietar ou aquietar os espíritos. Como se a lucidez política tivesse dado lugar à conhecida causalidade diabólica dos bodes expiatórios: para uns é a imigração, a corrupção e as elites, para outros é a extrema-direita, o fascismo, às vezes meso o nazismo, além das habituais e múltiplas “fobias”.
  • Todos convergindo, no entanto, embora com perspectivas opostas, na consagração de regressões mentais persecutórias e quase psicóticas, como a dos crimes de ódio por “dá cá aquela palha” e outros dislates “wokistas” do género, que lamentavelmente começam a lembrar, a quem por lá passou, os tiques e as práticas de uma ditadura afinal não muito distante…
  •  A esta luz, foi lamentável, a roçar o patético, o espectáculo dos nossos euro-beatos candidatos às eleições de 9 de junho, todos entoando os mesmos salmos e larachas, sem conteúdo nem consequências…Eleições em boa verdade bizarras, as únicas no mundo que não têm contraponto num povo, uma vez que o “povo europeu” continua a ser uma entidade política inexistente. E com candidatos que ninguém sabe o que vão fazer – alguém se lembra do que fez algum dos que lá estiveram nos últimos cinco anos? -, sempre acolitados pelos habituais comentadores ruminantes (ou vice-versa), todos convergindo no mesmo evangelho, todos exibindo o vazio sideral em que hoje se faz a política, toda ela centrada em permanentes guerrilhas contra inimigos inexistente, ou quase (é altura de lerem o belo livro de Italo Calvino “O Cavaleiro Inexistente”), uns e outros mutuamente transformados nos bodes expiatórios de todas as impotências da política, venha ela de que quadrante vier.
  • E assim se entregam todos, uns intencionalmente outros cegamente, nas mãos do único extremismo que, na verdade garrota hoje o ânimo, a imaginação e a vontade dos povos, que é o “extremismo do centro”, um extremismo que é a grande novidade política das últimas décadas, que trocou a histérica radicalidade dos discursos inflamados pela invisíveis profundidades da servidão voluntária, dando forma a um “europeísmo” que se tornou na única ideologia possível, que todos aceitam, num verdadeiro consenso de manada.
  • Esquecendo assim – ou ocultando-os, com uma astuta perfídia – factos tão determinantes e decisivos, como já aqui lembrei há dias, como o da natureza não democrática – quantas vezes anti-democrática! – da União Europeia, o da completa artificialidade do Parlamento Europeu, o do desmantelamento das soberanias nacionais, o da substituição dos direitos dos cidadãos pelos caprichos do individualismo sem limites, o da ilegítima promoção de todo o tipo de minorias, o da na crescente sacralização dos procedimentos normativos à revelia do poderes dos parlamentos nacionais, o do cosmopolitismo alucinado que impede a U.E. de definir, ou sequer de pensar, quaisquer fronteiras – e a lista poderia continuar, a lembrar que de nada, absolutamente nada disto, se falou na campanha eleitoral para as eleições do próximo dia 9 de junho.
  • Acabo com a única certeza que tenho: que a abstenção, isto é, esse comportamento que se situa entre a indiferença e o desprezo pela política e pelos políticos, vai ganhar largamente estas eleições. Para lá dessa certeza, só adianto o palpite que em breve muita coisa pode mudar, confirmando que, apesar de tudo, o futuro ainda nos pode reservar algumas surpresas, conjugando inesperadamente o que Maquiavel chamou a “fortuna” e a “virtù” – quem sabe?

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