O EXTRAORDINÁRIO LANCE ESTRATÉGICO JOE BIDEN

. E se, afinal, tivesse sido Joe Biden quem organizou tudo? O seu notável discurso de ontem, dia 24 de julho, veio confirmar a pertinência desta pergunta, que faço desde a sua renúncia, no passado dia 21.

. Com a renúncia de Joe Biden à sua recandidatura, estabeleceu-se imediatamente um consenso mais ou menos universal, que consistiu basicamente em dizer que ele não tinha conseguido resistir às múltiplas pressões – dos barões do partido democrático, dos media, dos financiadores, do lobby de Hollywood, etc. – para desistir da sua disputa à Presidência dos EUA, depois do fatídico debate com Donald Trump no dia 27 de junho.

. É um consenso compreensível, dado o grau de estupidez sistémica – a expressão é do filósofo Bernard Stiegler – em que hoje vive o espaço público, nacional ou global, dominado pelo imediatismo, pelo presentismo e pela excitação, quando o devia ser pela prudência, pelo enquadramento histórico e pelo conhecimento. Mas o impensar é o que hoje domina. Seria um consenso possível, mas que na verdade rapidamente se revela inverosímil, bastam uns minutos de reflexão para o perceber.

. É que para tal ser verdade, seria preciso atribuir a Joe Biden uma senilidade aguda, que o impedisse de ver a evidência, ou seja, as irremediáveis consequências do seu catastrófico debate com Trump no dia 27 de junho. O que sempre me pareceu ser completamente contraditório e incompatível com diversas das suas intervenções posteriores, sem dúvida a exibirem as marcas de um visível envelhecimento (lapsos, cansaço, etc.), mas também a revelarem, no essencial, um sólido domínio dos complexos dossiers que abordava.

. Penso por isso exactamente o contrário da opinião que se generalizou – penso que Joe Biden, com a sua experiência política de muitas décadas e com a constante argúcia de que sempre deu provas na sua longa carreira, foi quem mais depressa percebeu e avaliou o irremediável, isto é, o trunfo que com o debate de 27 de junho ofereceu ao seu detestado adversário, abrindo caminho a uma inevitável derrota face a Trump nas eleições de Novembro.

. E que era sobretudo isso aquilo que Joe Biden mais temia: que, depois da sua difícil e histórica vitória de 2020 e de um mandato que ele avaliava – apesar de alguns pesados desaires – como muito positivo para os EUA e para o mundo, tudo acabasse numa humilhante derrota frente ao seu tão desprezado adversário. E por isso procurou desde logo uma saída, que permitisse uma continuação democrata na Presidência dos EUA.

. Foi a essa tarefa que, a meu ver, ele dedicou todo o seu talento e toda a sua perspicácia política a partir de então, traçando  a estratégia que haveria de conduzir à “surpresa” do passado dia 21, decidido sobretudo a evitar uma guerra de egos e de ambições que se multiplicavam no seio do partido democrático, um partido completamente atordoado e destroçado pela situação, uma guerra fratricida que seria inevitável se ele renunciasse sem mais,  logo a seguir ao debate de 27 de junho, à sua recandidatura.

. Mobilizando a sua vasta experiência política, o seu minucioso conhecimento do dispositivo comunicacional e o seu apurado sentido dos timings, o que Joe Biden fez desde então foi definir e conduzir uma estratégia que assentava em dois pilares: o controlo do tempo político, por um lado, e a opção sobre quem se lhe seguiria, que fosse capaz de derrotar Trump, por outro lado. Pilares indissociáveis, pois só o controlo do tempo político permitiria a Joe Biden tornar incontornável – como veio a acontecer – a sua escolha sobre quem o substituiria na corrida presidencial.

. E foi precisamente o que veio a acontecer: enquanto crescia o furor mediático e algazarra política, entre os dias 27 de junho e 21 de julho, Joe Biden prosseguiu paciente e discretamente a sua estratégia, gerindo o tempo político, fazendo centenas e centenas de contactos decisivos e, sobretudo, avaliando e consolidando a sua opção por Kamala Harris. Construindo uma teia estratégico-política que surpreenderia todo o mundo.

. Só assim se compreende a lógica do que aconteceu depois: Joe Biden decide renunciar no dia 21 de junho, sem aviso e sem indicar qualquer “herdeiro” (como se não o tivesse…), para algum tempo depois, num segundo comunicado, quando ele bem sabia que já ninguém no partido tinha tempo para se candidatar – nem sobretudo estrutura de campanha ou financiamentos, que legalmente só podiam transitar de Biden para Harris -, anunciar então a sua opção pela sua vice-Presidente.

. Como também só assim se compreende que se tenha assistido, mais do que ao anúncio de uma candidatura, à consagração quase instantânea de Kamala Harris.  Uma consagração que, com a sua habitual excitação noticiosa os media ajudaram a consolidar, sem perceberem a teia estratégica que na realidade há muito os comandava. E foi assim que bastaram cerca de 12/18 horas para se passar, de uma tímida e confusa conversa mediático-política sobre as dificuldades da candidatura de Kamala Harris, à sua completa entronização, ao júbilo generalizado de todo o partido – militantes, senadores, governadores estaduais, etc. – , com a transferência imediata da grande maioria dos delegados de Joe Biden à Convenção de meados de Agosto para Kamala Harris – que agora vai ter que mostrar se está à altura das expectativas de Joe Biden e de derrotar Donald Trump a 4 de novembro.

. Com este sucesso político da sua estratégia, Biden pôde – com todas as fragilidades e limitações humanas que, na verdade, ele conhece melhor do que ninguém – retomar e continuar o seu mandato, com a esperança de não voltar a ter na Presidência o seu velho – e agora o “velho” é ele! – adversário Donald Trump.  Foi talvez o último lance de um grande político, que soube fazer da sua longa carreira um permanente e modesto exercício de aprendizagem, longe das miragens heróicas – como diria Daniel Innerarity – que caracterizaram a política noutros tempos. Num tempo em que os heróis vão dando lugar a idiotas ou a palhaços, é reconfortante ver alguém, como Joe Biden, afirmar-se como um sábio da política.

. O oposto, diga-se em conclusão, do que tem acontecido em França com Emmanuel Macron que, convencido que era o Júpiter de uma nova era política, lançou – com uma imprudência infantil que nele se combina com uma cega arrogância – o seu país num caos político, social e cultural que só vai reforçar aqueles que ele dizia querer combater, sobrevivendo por agora agarrado à oportuna boia de uma … “trégua olímpica”.

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