DO WOKISMO AO TRUMPISMO – 3

                                         3– HIPNOCRACIA, O “SEGREDO” DE TRUMP

. 26 mentiras!…diz o Washington Post, foi este o número de mentiras que, em apenas uma hora e quarenta minutos,  Donald Trump proferiu no seu discurso no Congresso dos EUA, no passado dia 4. Por dia, no decurso do seu mandato 2016/2020 – diz o mesmo jornal – Donald Trump terá proferido uma média de 21 mentiras por dia. Como explicar o seu sucesso, tendo presentes estes dados, que são conhecidos de todos? É preciso mudar de lentes para compreender estes factos, e tudo aquilo de que eles são indícios. Sem isso, o nevoeiro é completo….                                                     

. Na verdade, as primeiras semanas do mandato presidencial de Donald Trump têm dado continuidade àinédita estratégia de propaganda política da sua campanha eleitoral. É este o ponto vital a compreender: que ele deixou os seus adversários, os jornalistas e os comentadores entretidos no velho labirinto dos factos alternativos e das controvérsias da pós-verdade, enquanto apostava numa outra via, propiciada e propulsada pelas actuais possibilidades tecnológicas e pelas redes sociais.

. Essa via foi a do condicionamento manipulatório da própria percepção da realidade, sobretudo através da torrencial cascata de factos e versões, da sua constante repetição e negação, da irresistível expectativa de mais transgressões da sua parte – o que se passou na Sala Oval da Casa Branca entre Tump e Zelensky no passado dia 28 ilustra bem tudo isto! E não ficaremos por aqui… – , num ritual tão estonteante como estereotipado, que aprisiona a consciência colectiva num registo que há muito tenho designado como impensar, registo que configura uma nova, realmente nova, modalidade da consciência individual e colectiva contemporânea.

. Um dos operadores mais eficazes desta modalidade é o que, em retórica, se chama um oxímoro, isto é, a junção de duas palavra de significados opostos, artificio que é comum na poesia (é bem conhecido o seu uso por Camões, por exemplo em “Amor é fogo que arde sem se ver /É ferida que dói e não se sente/ É um contentamento descontente/ É dor que desatina sem doer”), sendo frequentes nas expressões “obscura claridade”, “silêncio ensurdecedor”,” instante eterno”, etc.  Mas o oxímoro pode ter outros usos, nomeadamente – é o que para o caso mais interessa – no discurso político, como acontece, entre tantas outras, com as expressões “capitalismo moral”, “mercado civilizacional”, “crescimento sustentável” ou “democracia iliberal”.

. E o uso político do oxímoro e dos seus efeitos tornou-se extremamente importante, porque ele, parecendo oferecer a solução para um problema, na verdade instaura uma poderosa ilusão que apenas conduz a uma cadeia de impasses e de conformismos, uma vez que na realidade nada muda, tudo se reduzindo a um mero, mas tremendamente eficaz, jogo de palavras.  Daí este seu uso ser cada vez mais frequente, a revelar bem a incapacidade, a impotência dos nossos líderes. Encontrei recentemente esta mesma intuição, trabalhada numa ambiciosa visão do nosso tempo, no conceito de hipnocracia, proposta pelo filósofo Jianwei Xun, num pequeno mas acutilante livro que tem como título aquele conceito, e como subtítulo “Trump, Musk e a nova arquitectura da realidade”.

. O que Jianwei Xun pretende, é descrever um sistema em que o poder opera directamente na consciência colectiva, o que hoje é possível através da manipulação algorítmica da atenção do indivíduos, e da sua percepção da realidade. Perspectiva que considera as plataformas digitais, não como instrumentos de comunicação, mas como tecnologias hipnóticas que reconfiguram com grande eficácia o modo como os indivíduos veem, configuram e interpretam o real.

. A hipnocracia actua, segundo J.Xun, apoiando-se em dispositivos que permitem ao poder exercer-se através de uma multiplicação sideral, caótica, de fait-divers, que cria um estado de atordoamento generalizado, tornando assim literalmente impossível a estabilização de qualquer perspectiva crítica ou, mesmo, de qualquer compreensão minimamente racional do que acontece. Daí a multiplicação das narratretas jornalísticas e dos estereótipos do comentariado – tudo tagarelice inútil, completamente “ao lado”…

. Ora é exactamente isto o que temos visto acontecer com a nova presidência de Donald Trump, como o próprio reconheceu num momento que passou despercebido, quando ele respondia a quem o acusava de constantemente se contradizer, ziguezaguear e divagar todo o tempo. Não, disse Donald Trump num comício de campanha, na Pensilvânia, no dia 6 de Setembro do ano passado, “I do the weave, you know what the weave is?  I’ll talk about, like, nine different things that they all come back brilliantly together. (…) It’s not rambling. What you do is you get off a subject to mention another little titbit, then you get back on the subject, and you go through this and you do it for two hours, and you don’t even mispronounced one word” (The Guardian, 07.09.2024, intervenção que também se pode  ver no YouTube, https://www.youtube.com/watch?v=6EtHrIDAues).

. Era e continua a ser esta a chave da estratégia política e comunicacional de Trump: tecer o espaço mediático-reticular saturando-o com a permanente multiplicação de anúncios e de intenções, de alusões e de insinuações, de evidências e de mentiras, que depois tanto pode esquecer como de alterar, desmentir como adiar, retocar como concretizar, tudo é sempre possível e nada é nunca seguro, tornando assim ainda mais incerto antecipar “o que lá vem”. A não ser, penso, que estamos na concha de uma enorme vaga, talvez a maior desde meados do século passado, que está a reconfigurar o mundo, reclamando ideias novas e conceitos inéditos como condição sine qua non, não só para a sua compreensão, mas também para a acção que ela certamente exigirá.

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