O CAOS, UMA NOVA FORMA DE TIRANIA?

O ACONTECIMENTO

. Depois de tantas vezes ter sido anunciado, vivemos finalmente um tempo novo, num mundo que parece vacilar constantemente entre certezas abaladas ou perdidas e expectativas sem conteúdo ou forma, ninguém percebendo o que é que, afinal, lá vem…. Um acontecimento é, contudo, isso mesmo: não é um facto, mas antes aquilo que marca uma ruptura, uma diferença, um abismo na ordem dos factos, entre dois momentos muitas vezes incomensuráveis, o antes e o depois, e nos coloca como que manietados entre eles. Um acontecimento é a própria mudança em processo, em aberto, em devir, que nos impõe sem escapatórias possíveis três confrontos: com o imprevisto, com o desconhecido e com a descontinuidade, em suma, com a contingência.

. E todos os verdadeiros acontecimentos são assim, têm uma gestação discreta, lenta mas irreversível, de que contudo vão dando sinais que poucos conseguem, ou querem, ver. Por isso, nada mais inútil para a sua identificação e compreensão do que a tagarelice que o seu pressentimento ou impacto desencadeiam no mundo mediático, sempre cego pelo presentismo em que vive. Essa tagarelice, cada vez mais acompanhada por muita alacridade, nasce aqui, na sua obsessiva cegueira face ao presente. E é ela que acompanha hoje o infotretenimento que, num contínuo palavroso tão torrencial como vazio, anestesia as sociedades e os indivíduos.

O TEMPO DOS PREDADORES

. Mas afinal que tempo é esse, em que o atordoamento parece cada vez maior e mais generalizado? É, diz Giuliano da Empoli num livro que acaba de publicar, o tempo, a hora dos predadores. Autor de dois livros importantes, um de ficção sobre a Rússia contemporânea, O Mago do Kremlin, e outro de análise das bases tecnológicas do chamado populismo, Os Engenheiros do Caos (ambos já traduzidos para português pela editora Gradiva), Giuliano da Empoli é um intelectual singular, com um perfil que combina a actividade de conselheiro político – foi-o de Francesco Rutelli, ministro da cultura italiano, e também do primeiro-ministro de Itália, Matteo Renzi – com a de escritor e, sobretudo, a de ensaísta. Além disso, dirige desde o ano passado a publicação anual de um dos mais interessantes sites de geopolítica, Le Grand Continent, cujo último volume procura traçar o “Portrait d’un Monde Cassé”.

. L’Heure des Prédateurs (editado pela Gallimard) não é nem uma obra de ficção, como O Mago do Kremlin, nem um ensaio, como Os Engenheiros do Caos. Na verdade, trata-se de um roteiro pelos bastidores dos novos poderes deste novo tempo, no que eles têm de mais obscuro e revelador, procurando compreender o que vai emergindo entre o “antes” e o “depois” que referi. No seu ensaio anterior Giuliano da Empoli já tinha sublinhado o modo com a tecnologia, através das suas cada vez mais poderosas plataformas, mudou a política em todas as suas dimensões, transformando ao mesmo tempo a própria experiência humana nas suas componentes mais subjectivas. Tecnologia que, contudo, ele vê como um elemento que veio reforçar diversas dinâmicas sociais e económicas já existentes no mundo contemporâneo, de que o “populismo” é, não uma causa, mas um sintoma. Dinâmicas em que o fenómeno decisivo terá sido, acrescento eu, o esboroamento ideológico simultâneo à consagração de uma concepção do homem como dominado por uma hubris hiper-individualista, o que levou a que, como G. da Empoli bem observou, “a política se pareça cada vez mais com um produto de consumo mediático, em competição com a última série Netflix.”

O CAOS E A TIRANIA

 A Hora dos Predadores dá-nos um retrato deste novo mundo, pontuado por diversos momentos vividos pelo autor sobretudo no decurso de 2024, em Riade, Nova York, Montreal, Washington ou Berlim, mas também com incursões muito inspiradas e instrutivas noutros locais e datas: Paris em 1921, Roma em 1998, Florença em 2012, Chicago em 2017 ou Lisboa em 2023. De toda esta peregrinação Giuliano da Empoli vai tirando várias conclusões e deixando várias análises em que vale bem a pena pensar, que apontam para uma hipótese central: a de que, se como tinha afirmado em 2019 no livro Os Engenheiros do Caos, o que então se estava a consolidar era a estratégia de colocar as plataformas digitais ao serviço das mais diversas formas e manifestações de cólera popular contra as elites, criando um caos que minasse as democracias liberais, agora a situação é diferente, o que ele defende é que se mudou de fase, e de um modo radical, tendo o caos passado a ser, não só o instrumento da cólera do “povo”, mas também – e cada vez mais – o instrumento e a marca do poder, de um poder cujas características se alteraram profundamente.

. Nesta configuração o wokismo foi, na sua perspectiva, “o pão abençoado, o carburante ideal para alimentar a máquina do caos” (p.90), de um caos que se torna assim hegemónico, viabilizando uma forma, historicamente inédita, de tirania: é esta a hora dos predadores, que procuram provocar uma sideração generalizada através do uso e da exibição permanente do seu poder e da sua força: “tudo o que constituía os garde-fous do mundo antigo (…) perdeu qualquer valor na hora dos predadores. No novo mundo, todo os processos serão levados às suas consequências mais extremas” (p.75), o que os predadores instauram é um “mundo sem limites, eles não se contentam em resistir à adversidade, eles vão buscar a sua força ao que é mais inesperado, instável, belicoso” (p. 76) – exactamente como todos temos visto, e certamente iremos continuar a ver, em cada dia que passa.

 

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