. Vivemos quotidianamente num espaço público cada vez mais vazio e anestesiante, em que a tagarelice dominante e ruminante – nomeadamente a da informação que se transformou em infotretenimento e a do comentariado que se transformou numa variedade de reality show – parece apenas pretender ocupar, preencher o espaço/tempo que medeia entre os diversos blocos publicitários. E deste modo tornar, como há anos afirmou o patrão de uma grande cadeia televisiva europeia, os cérebros dos espectadores – a expressão foi mesmo esta – “disponíveis”. Não só disponíveis mas, acrescento, também atolados numa estupidez natural, numa passividade só interrompida por impulsos – ora mais compulsivos, ora mais aleatórios – para o consumo, seja lá do que for.
DECLÍNIO DEMOCRÁTICO E ASCENSÃO JUDICIÁRIA
. Tudo isto é complexo, tem vindo a minar e a demolir as melhores democracias e a estimular a progressão dos regimes autocráticos. Segundo o Relatório de 2024 do V-Dem Institut da Universidade de Gotemburgo, se as democracias plenas em 2012 eram 42, hoje são apenas cerca de 30. E se 54% da população mundial vivia então em países livres, hoje essa percentagem é de 29%, revelando uma assustadora e crescente tendência, que levou a que o número de autarcias e de democracias no mundo seja já quase igual. Tendência que alavanca também a judicialização da política que, num sinistro caldo de ambições totalitárias, se intensifica – como temos visto – todos os dias, de um modo tão ilegítimo como impune. Tema a que voltarei.
. Tornou-se uma banalidade dizer que vivemos um tempo inédito e num mundo novo. Mas esta banalidade é, contudo, acompanhada pela repetição – diria mesmo, pela recitação – de palavras e noções de outros tempos, gastas e bloqueadoras, revelando uma incapacidade de apreender a novidade que se pressente ou enuncia. Mas esse é o lance que se impõe para se compreender o mundo de hoje, nas suas sofisticadas e invisíveis engrenagens. Sem isso, é certa a condenação ao atordoamento, à desorientação, à sideração – à submersão, diria Bruno Pattino – , tudo preliminares de uma nova forma de servidão voluntária a que, errática e ilusoriamente, a humanidade se entrega cada vez mais.
TRUMP, MUSK E O CAOS
. A vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais de Novembro de 2024, as suas medidas nestes três primeiros meses de exercício das suas funções, revelam bem o modo como está a emergir e a impor-se uma nova forma de poder em que, como Giuliano da Empoli afirmou num livro recente (de que falei na últimanewsletter), o caos deixou de ser um instrumento dos povos em cólera contra o poder (e dos chamados populismos que ele originou), para se tornar num instrumento polivalente do próprio poder, numa metamorfose tão inesperada como decisiva, a dar os seus primeiros passos e a anunciar uma nova forma de autoritarismo.
. Pensar o poder a partir, não da ordem, mas do caos, e de um caos polivalente e permanentemente estimulado é, a meu ver o primeiro lance “epistemológico” que se impõe para se compreender a realidade do mundo actual. O segundo é pensar a nova aliança que dá forma e força a este poder, que é a da política com as formas mais sofisticadas da tecnologia contemporânea – e ler a associação Trump / Musk nesta perspectiva, deixando as leituras psicotrópicas e as suspeitas narratrópicas para a lenga-lenga dos media, que na verdade são simultaneamente obreiros e reféns desta nova realidade, que eles alimentam com uma cumplicidade constante.
OBAMA – A POLÍTICA E AS BIG TECHS
. Tudo isto que agora emerge vem, todavia, bem de trás. Começou, como já tenho observado, com Barak Obama, que depois de, em 2008, ter dado início à aliança da política com as redes sociais, recorreu em 2012 ao patrão da Google, Eric Schmidt, para ultrapassar as dificuldades que a sua reeleição estava a enfrentar. Schmidt aceitou o desafio, deixou mesmo de ser o director-executivo da Google, embora tenha continuado a ser o seu presidente, e criou uma plataforma algorítmica poderosíssima – o projecto Narval – que permitia chegar directamente a dezenas de milhões de americanos, num inédito porta-a-porta digital, contribuindo assim decisivamente para a segunda vitória de Obama.
. Este processo de cumplicidade entre a política e as big techs nunca mais parou, tendo sido aprofundado empresários como Peter Thiel (fundador, com Elon Musk, da PayPal), ideólogos como Curtis Yarvin (um dos mais influentes conselheiros de J.D.Vance), estrategas da Heritage Foundation, etc. Embora tenha sido determinante, deixemos por agora este processo de lado, e voltemos atrás, à urgência que o nosso tempo e mundo revelam de novas abordagens e novas ideias, capazes de perscrutar e decifrar o que ainda não é visível nos novos poderes e na nova realidade.
A I.A. COMO PHARMAKON
Foi exactamente isto que o filósofo italiano Andrea Colamedici procurou fazer com o livro Hipnocracia, que ele caracteriza como um livro-dispositivo para assim marcar a singularidade, o ineditismo do trabalho que esteve na sua origem, e que consiste no facto de ele ter sido executado com a colaboração interactiva de duas plataformas de Inteligência Artificial, razão pela qual também criou o seu “autor”, Jianwei Xun. A iniciativa é naturalmente polémica, mas o que mais interessa é que dela resulta uma noção heuristicamente poderosa, uma visão que ilumina muito daquilo que vive na obscuridade, decifrando as características e modalidades do imenso poder que está a emergir da convergência da tecnologia mais avançada com a política mais disruptiva.
. Como Andrea Colamedici – que é professor de “prompt thinking” e autor de várias obras, com destaque para La Società della Performance – afirmou em entrevista à revista italiana L’Expresso: “Por um lado, Trump esvazia o significado da linguagem com palavras que, repetidas à exaustão, se tornam significantes vazios, desprovidos de sentido e, no entanto, carregados de poder hipnótico. E, por outro lado, Musk inunda a nossa imaginação com promessas utópicas destinadas a nunca se concretizarem, arrastando as mentes para um transe de antecipação obsessiva. Juntos, eles modulam desejos, reescrevem expectativas, colonizam o inconsciente.” (04.04.2025)
. Foi, pois, num inspirado lance de argúcia e de ousadia, que Andrea Colamedici assumiu recorrer à I.A. para atingir os seus objectivos . Não para obter respostas feitas, nem para plagiar autores ou para enxertar extractos anónimos, mas para mostrar que é possível fazer um outro uso da I.A., problematizando com ela, colaborativamente, o trabalho que ia desenvolvendo. Mostrando assim que a I.A. é um pharmakon, termo grego referido por Platão, que tanto pode designar veneno como remédio, conforme o uso e o contexto da sua utilização.
. FACE À I.A. – SUBMISSÃO OU COLABORAÇÃO?
Claro que a generalizada estupidez natural reduz tudo isto a mais um fait-divers, a uns minutos de infotretenimento, como há dias aconteceu num canal televisivo, de resto com a minha negligente colaboração. Por isso insisto em que, longe disso, a Hipnocracia é uma obra que abre para uma outra visão do nosso mundo, ao mesmo tempo que exemplifica de que modos se instala essa realidade, e procura indicar alguns modos de lhe resistir. Perguntar se se trata de um livro ou de um dispositivo é, na verdade, apenas ruminar lugares-comuns e passar ao lado do essencial, que é o problema que ele enuncia, bem como as ideias que propõe para o enfrentar. E o mesmo se diga em relação ao nome do autor, à questão de saber afinal quem é, se será uma mera invenção, se não será um pseudónimo que procura beneficiar da actual aura da I.A., etc., etc. Tudo isto são observações pueris, irrelevantes perante a força esclarecedora da visão que é proposta. Sobretudo porque, como diz o meu amigo Luc Ferry, num oportuno e notável livro que publicou no começo do ano (I.A. – Grand Remplacement ou Complementarité?, Éditions de l’Observatoire), a questão mais decisiva do nosso tempo é a de saber se a I.A. abre caminho à submissão, no limite à servidão, do humano face à I.A. Ou se, pelo contrário, ela propicia formas de complementaridade compatíveis com a autonomia e liberdade humanas. O processo em curso é irreversível, sem retorno, mas há várias opções em aberto, que é fundamental equacionar a tempo, com conhecimento e coragem.